Nísia
Floresta Brasileira Augusta (1810-1885)
A história da luta feminina em busca de
seus direitos no Brasil tem seu início em Nísia Floresta Brasileira Augusta. A
esta mulher devemos as primeiras e mais importantes páginas dessa luta, pela
coragem revelada em seus escritos e pelo ineditismo e ousadia de suas idéias.
Este nome pertenceu a uma potiguar -
Dionísia Gonçalves Pinto - nascida em 1810 e que, após residir em diversos estados
do Brasil, mudou-se para a Europa onde passou o resto de sua vida. Nísia
Floresta morreu em 1885, em Rouen, no interior da França.
Neste contexto, enquanto que a grande
maioria das mulheres brasileiras vivia trancafiada em casa sem nenhum direito;
quando o ditado popular dizia que "o melhor livro é a almofada e o
bastidor" e tinha foros de verdade para muitos, Nísia Floresta dirigia um
colégio para moças no Rio de Janeiro e escrevia livros e mais livros para
defender os direitos das mulheres, dos índios e dos escravos.
Nísia Floresta deve ter sido uma das
primeiras mulheres no Brasil a romper os limites do espaço privado e a publicar
textos em jornais da chamada grande imprensa. E foram muitas as colaborações na
forma de crônicas, de contos, de poesias e de ensaios. Basta lembrarmos que foi em 1816 que a
imprensa chegou ao país, para acentuar o traço da modernidade de Nísia
Floresta: sua constante presença na imprensa nacional, desde 1830, sempre
comentando as questões mais polêmicas da época.
Naturalmente - até como não podia
deixar de ser - Nísia recebeu em troca o desprezo, a difamação e o
esquecimento, principalmente da parte de seus conterrâneos. Sua figura foi
envolvida por um manto de mistério em sua terra natal e durante algumas dezenas
de anos não se ouviu falar dela. O pouco que se ouvia estava marcado pelo preconceito,
ou impregnado da surpresa de se encontrar, em tempos passados, uma história de
vida como a sua e uma obra contendo reflexões tão avançadas para a época. O
fato de estar à frente de seu tempo custou-lhe, no mínimo, o não-reconhecimento
de seu talento. Seu nome até hoje não costuma ser citado na história da
Literatura Brasileira como escritora romântica e muito menos na História da
Educação feminina, como educadora.
Com uma rápida apresentação de alguns
de seus escritos, vocês podem conhecer um pouco mais as diversas vertentes da
militância da autora. O interessante, numa leitura de sua obra, é observar como
os textos dialogam entre si, um iluminando o outro, como peças complementares
de um mesmo plano de ação prática, qual seja, formar e modificar consciências.
E tal plano tinha principalmente um propósito: alterar o quadro ideológico
vigente no que diz respeito ao comportamento das mulheres e, naturalmente, o
dos homens seus contemporâneos.
Senão, vejamos: o primeiro livro
escrito por Nísia Floresta é também o primeiro de que se tem notícia no Brasil
que trata dos direitos das mulheres à instrução e ao trabalho, e que exige que
as mulheres sejam consideradas como seres inteligentes e merecedoras de
respeito pela sociedade. Este livro, publicado em 1832 em Recife (PE), tem o
sugestivo título de Direitos das mulheres e injustiça dos homens,
e, quando surgiu, Nísia tinha apenas 22 anos e a grande maioria das mulheres
brasileiras vivia enclausurada em preconceitos, sem qualquer direito que não
fosse o de ceder e aquiescer sempre à vontade masculina.
No ano seguinte - 1833 - saiu uma
segunda edição e, em 1839, ainda uma terceira, no Rio de Janeiro. Direitos
das mulheres de Nísia Floresta foi inspirado no livro de Mary
Wollstonecraft, a feminista inglesa: Vindications of the Rights of
Woman. Só que, ao invés de fazer simplesmente uma tradução, a autora brasileira
aponta os principais preconceitos existentes no Brasil contra seu sexo,
identifica as causas desse preconceito, ao mesmo tempo em que desmistifica a
idéia dominante da superioridade masculina.
Tais reflexões não encontraram eco
entre os contemporâneos e são o testemunho do quanto Nísia Floresta
representava de exceção em meio à massa de mulheres submissas, analfabetas e
anônimas. Foi esse livro que deu à autora o título de precursora do feminismo
no Brasil e, talvez, até mesmo da América Latina, pois não existem registros de
textos anteriores realizados com estas intenções.
O texto revolucionário de Mary
Wollstonecraft havia sido publicado em Londres em 1792, como uma resposta à Declaração
universal dos direitos do homem. Neste mesmo ano surgiu a tradução francesa
e nos anos seguintes diversas outras edições. Rapidamente o livro se tornou
conhecido e repercutiu pela Europa e Estados Unidos consagrando o nome de sua
autora como a pioneira na defesa dos direitos da mulher.
Quatro décadas mais tarde seria a vez
de Nísia Floresta inscrever seu nome nesta história ao fazer a tradução livre
deste livro, baseada na versão francesa. E aí está a grande questão. Na verdade
Nísia Floresta não realiza uma tradução, no sentido convencional, do texto da
feminista. Ela realiza sim, um outro texto, o seu texto sobre os direitos das
mulheres. Mary Wollstonecraft lhe deu a motivação ao colocar em letra impressa
questões pertinentes à mulher inglesa, voltadas para o público de seu país.
Nísia empreende então uma "antropofagia libertária" e, poderíamos
ainda acrescentar: não como opção, mas até como uma fatalidade histórica. Na
deglutição geral das idéias estrangeiras aqui chegadas, era comum promover-se
uma acomodação das mesmas ao cenário nacional. É o que ela faz. Assimila as
concepções de Mary Wollstonecraft e devolve um outro produto, pessoal, em que
cada palavra é vivida, em que os conceitos surgem das páginas como algo
visceral, extraídos da própria experiência e mediatizadas pelo intelecto.
Não é, portanto, o texto inglês que se
conhece ao ler estes Direitos das mulheres e injustiça dos homens.
Ainda está para ser feita a sua tradução em língua portuguesa. Temos sim, nesta
tradução livre, talvez o texto fundante do feminismo brasileiro, se o vemos
como uma nova escritura, ainda que inspirado na leitura de outro. Vejo-o como
uma resposta brasileira ao texto inglês; a nossa autora se colocando em pé de
igualdade com a Wollstonecraft e até com o pensamento europeu, e cumprindo o
importante papel de elo entre as idéias européias e a realidade nacional.
Em sua essência, os Direitos
das mulheres de Nísia Floresta se encontram com os Rights of
woman,de Mary Wollstonecraft, tanto na denúncia da mulher como "classe
oprimida" como na reivindicação de uma sociedade mais justa, em que ela
seja respeitada e tenha os mesmos direitos. Também são pontos comuns a denúncia
da superioridade masculina apoiada na força física, a valorização da função
materna, a educação como o meio eficaz de promoção feminina e o aparato
filosófico de feição iluminista. No mais, os textos se distanciam tomando cada
qual o seu rumo, segundo as motivações das autoras, o público a que se
destinavam e as peculiaridades da condição feminina num e noutro lugar.
Por exemplo: enquanto a feminista
inglesa dedica seu livro ao senhor Talleyrand-Périgord - o antigo bispo de
Autun e líder moderado da Revolução Francesa - não exatamente para
homenageá-lo, mas como forma de lhe responder e contestar suas idéias sobre a
educação feminina, Nísia Floresta dedica seus Direitos às
mulheres brasileiras e aos jovens académicos de seu tempo. E é fácil entender
porquê. As mulheres porque é delas que trata e por elas escreve. E aos
acadêmicos porque, afinal de contas, eram eles os representantes legítimos da
elite pensante do país, aqueles que poderiam, se quisessem, mudar os rumos dos
acontecimentos. Foi desta geração, sabemos bem, que saíram os abolicionistas,
os republicanos e também uns poucos - bem poucos - defensores dos direitos da
mulher.
Nísia Floresta questiona em 1832 o
porquê de não haver mulheres ocupando cargos de comando, tais como de general,
almirante, ministro de estado e outras chefias. Ou ainda, porque não estão elas
nas cátedras universitárias, exercendo a medicina, a magistratura ou a
advocacia, uma vez que têm a mesma capacidade que os homens. Como se vê, ela
vai fundo em suas intenções de acender o debate e de abalar as eternas verdades
de nossas elites patriarcais.
E, assim, à medida que nos deixamos
envolver pelo discurso nisiano, maior se torna nossa admiração por esta figura
inovadora e audaciosa. Se Mary Wollstonecraft foi a primeira na Grã-Bretanha a
defender os direitos da mulher; no cenário nacional coube a Nísia Floresta o
privilégio de praticamente deflagrar a formação de uma consciência feminista.
Se considerarmos a contribuição nisiana a esse processo, seu papel de fundadora
e sua trajetória militante, num momento histórico de verdadeiro obscurantismo
em relação aos direitos femininos, seus vacilos, contradições e certas posturas
que hoje interpretaríamos como ingênuas e pueris, afiguram-se menores diante do
aspecto pioneiro de sua obra.
Em outros livros ela continuará a
tratar da temática destacando a importância da educação feminina para a mulher
e a sociedade. São eles: Conselhos a minha filha, de 1842; Opúsculo
humanitário, de 1853; A Mulher, de 1859; além de algumas
novelas dedicadas às jovens estudantes de seu colégio. Nesses escritos
encontramos desde conselhos de como as meninas deviam se comportar, os deveres
esperados de uma filha e histórias de cunho didático-moralista, até minuciosas
e ricas explanações acerca da história da condição feminina em diversas
civilizações e em diferentes épocas.
Em Opúsculo Humanitário, por exemplo,
que reúne sessenta e dois artigos sobre a educação já publicados nos principais
jornais da corte, Nísia Floresta tece comentários sobre a Ásia, a África, a
Oceania, a Europa e a América do Norte, antes de tratar do Brasil e da mulher
brasileira, sempre observando a relação existente entre o desenvolvimento
intelectual e material do país (ou o seu atraso), com o lugar ocupado pela
mulher. Nísia, em consonância com intelectuais da época, defende a tese de que
o progresso de uma sociedade depende da educação que era oferecida à mulher; e
que só a instrução, aliada à educação moral, dariam maior dignidade e fariam da
mulher uma melhor esposa e melhor mãe. Esses, aliás, seriam precisamente os
objetivos da educação das meninas: torná-las conscientes de seus deveres e
papéis sociais.
Hoje, preocupações como estas de Nísia
Floresta, podem soar, a ouvidos menos atentos, como algo ultrapassado e até
reacionário. Apenas, é preciso não perder de vista a repentina valorização da
mulher ocorrida em meados do século XIX, a partir mesmo do redimensionamento da
maternidade enquanto papel social. Se num momento a presença da mulher era
inexpressiva em conseqüência da rígida estratificação social que privilegiava o
masculino; em outro, a figura feminina transformava-se em centro das atenções,
devido à valorização de sua função biológica exclusiva: a maternidade. Tais
alterações tiveram, naturalmente, uma grande repercussão em meio às
intelectuais que vislumbraram, aí, a possibilidade de as mulheres adquirirem
status e poder diante da opinião pública.
Dissemos que Nísia estava à frente de
seu tempo. Também na abordagem de outras questões, como quando trata do índio
brasileiro, ela foi precursora. Em um longo poema de 712 versos - intitulado A
lágrima de um Caeté, de 1849 - encontramos interessantes posicionamentos da
autora a respeito do indígena. Uma rápida leitura do texto permite a
identificação de inúmeros elementos marcantes do romantismo como a lusofobia, o
elogio da natureza e a exaltação de valores indígenas. A novidade é que o poema
nos traz não a visão do índio-herói que luta, presente na maioria dos textos
indianistas conhecidos e, sim, o ponto-de-vista dos derrotados, do índio
vencido consciente e inconformado com a opressão de sua raça pelo branco
invasor.
Não cabem, pois, em seu índio, os
epítetos de inocente, de puro e de portador daquela "bondade
natural", idealizados nas teorias filosóficas européias e adotadas pelos
demais escritores brasileiros. O contato com o homem branco revelou-se
pernicioso demais para ele (e a história nos mostra) com conseqüências
irreversíveis. A dor do indígena vem precisamente da consciência dessa
irreversibilidade e do meio-lugar (ou lugar nenhum) em que se encontra. O
discurso da narradora, absolutamente preso ao do índio e às vezes até se
confundindo com o dele, acrescenta um dado fundamental: o da perda de
identidade por parte do silvícola, que os escritores românticos do período
tentavam escamotear.
No mesmo ano da publicação de A
lágrima de um Caeté, Nísia Floresta viajou para a Europa, onde permaneceu
vinte e oito anos de sua vida. E, nessa época, no auge da maturidade
intelectual, relacionou-se com grandes escritores, como Alexandre Herculano,
Dumas (pai), Lamartine, Duvernoy, Victor Hugo, George Sand, Manzoni, Azeglio e
Auguste Comte, viajando durante anos seguidos pela Itália, Portugal, Alemanha,
Bélgica, Grécia, França e Inglaterra.
Em Portugal ela residiu durante o ano
de 1851, quando teve oportunidade de viajar pelo país e fortalecer os laços de
amizade com Alexandre Herculano e Antonio Feliciano de Castilho. No Instituto
Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, aliás, existe um exemplar de Opúsculo
humanitário dedicado a Herculano.
Das muitas viagens que realizou pela
Europa resultaram alguns livros que, bem ao gosto da época, contém suas
impressões dos lugares que ia conhecendo. Só que Nísia Floresta não realiza
simples relatos de viagem. Ela descreve com riqueza de detalhes as cidades, as
igrejas, os museus, os parques, as bibliotecas e monumentos, detendo-se nos
tipos humanos e comentando tudo que observava sempre com muita sensibilidade e
erudição. Itinerário de uma viagem à Alemanha, de 1857, e Três
anos na Itália, seguidos de uma Viagem à Grécia (em dois
volumes, de 1864 e 1872) são os títulos desses livros escritos e publicados em
língua francesa. Apenas o primeiro foi traduzido para o português, em 1982,
depois de mais de cem anos em língua estrangeira; o outro, apesar de considerado
por mais de um crítico uma obra-prima, onde ela teria alcançado a culminância
de seu esplendor intelectual, continua inédito em língua portuguesa. E Três
anos na Itália é interessante porque contém anotações do ano anterior à
unificação italiana, a descrição da luta, dos sentimentos populares, do clima
revolucionário e ainda nos revela a admiração da autora pelos líderes,
Garibaldi e Azeglio, com quem se correspondeu durante algum tempo.
Um outro trabalho, dos mais
importantes, é Scintille d' un'anima brasiliana, publicado em
Florença, na Itália, no ano de 1859. Este livro contém cinco ensaios que tratam
da educação de jovens, da mulher européia, da pátria distante e das saudades
que ela sentia de seu país, após tantos anos ausente. Um dos textos, intitulado
"A Mulher", trata da mulher francesa de meados do século XIX, que a
autora critica pelo comportamento superficial e mundano. Nísia se antecipa aos
governantes e pensadores franceses e condena - nesse ensaio - o costume das
mulheres de abandonar os filhos recém-nascidos para serem amamentados e criados
distantes, no interior do país, por mulheres camponesas. Em outro ensaio,
"O Brasil", também publicado em Paris em 1871, ela resume a história
da nação brasileira, fala dos recursos econômicos, das riquezas conhecidas e
latentes, dos sábios e escritores mais conhecidos. Sua intenção era, além de
fazer propaganda da pátria no estrangeiro, desfazer os preconceitos e mentiras
que predominavam na Europa, acerca do Brasil.1
Assim, ainda que rapidamente e nos
limites desta palestra, tentei mostrar a importância do resgate de uma figura
como Nísia Floresta na história intelectual da mulher brasileira. No momento em
que se pesquisa e se constrói a história intelectual da mulher brasileira, é
hora de dar a Nísia Floresta o lugar de destaque que ela de fato merece e
reconhecer o ineditismo de seus escritos. A autora - que tão longe iria em sua
trajetória de vida - foi sim uma mulher "educada" entre as que
surgiram no Brasil patriarcal e também uma das raras mulheres de letras de seu
tempo. Mas foi mais ainda. Nísia Floresta foi também uma brasileira erudita e
"ilustrada", como bem poucas em nossa história.
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FONTES: (http://www.litcult.net/revistamulheres_vol1.php?id=7. Acessado
em 20 nov 2010; http://www.editoramulheres.com.br/cartasnisia.htm. Acessado em
20 nov 2010; http://pt.wikipedia.org/wiki/Dion%C3%ADsia_Gon%C3%A7alves_Pinto.
Acessado em 20 nov 2010;)