domingo, 28 de outubro de 2012

NISIA FLORESTA BRASILEIRA AUGUSTA


Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885)
A história da luta feminina em busca de seus direitos no Brasil tem seu início em Nísia Floresta Brasileira Augusta. A esta mulher devemos as primeiras e mais importantes páginas dessa luta, pela coragem revelada em seus escritos e pelo ineditismo e ousadia de suas idéias.
Este nome pertenceu a uma potiguar - Dionísia Gonçalves Pinto - nascida em 1810 e que, após residir em diversos estados do Brasil, mudou-se para a Europa onde passou o resto de sua vida. Nísia Floresta morreu em 1885, em Rouen, no interior da França.
Neste contexto, enquanto que a grande maioria das mulheres brasileiras vivia trancafiada em casa sem nenhum direito; quando o ditado popular dizia que "o melhor livro é a almofada e o bastidor" e tinha foros de verdade para muitos, Nísia Floresta dirigia um colégio para moças no Rio de Janeiro e escrevia livros e mais livros para defender os direitos das mulheres, dos índios e dos escravos.
Nísia Floresta deve ter sido uma das primeiras mulheres no Brasil a romper os limites do espaço privado e a publicar textos em jornais da chamada grande imprensa. E foram muitas as colaborações na forma de crônicas, de contos, de poesias e de ensaios.  Basta lembrarmos que foi em 1816 que a imprensa chegou ao país, para acentuar o traço da modernidade de Nísia Floresta: sua constante presença na imprensa nacional, desde 1830, sempre comentando as questões mais polêmicas da época.
Naturalmente - até como não podia deixar de ser - Nísia recebeu em troca o desprezo, a difamação e o esquecimento, principalmente da parte de seus conterrâneos. Sua figura foi envolvida por um manto de mistério em sua terra natal e durante algumas dezenas de anos não se ouviu falar dela. O pouco que se ouvia estava marcado pelo preconceito, ou impregnado da surpresa de se encontrar, em tempos passados, uma história de vida como a sua e uma obra contendo reflexões tão avançadas para a época. O fato de estar à frente de seu tempo custou-lhe, no mínimo, o não-reconhecimento de seu talento. Seu nome até hoje não costuma ser citado na história da Literatura Brasileira como escritora romântica e muito menos na História da Educação feminina, como educadora.
Com uma rápida apresentação de alguns de seus escritos, vocês podem conhecer um pouco mais as diversas vertentes da militância da autora. O interessante, numa leitura de sua obra, é observar como os textos dialogam entre si, um iluminando o outro, como peças complementares de um mesmo plano de ação prática, qual seja, formar e modificar consciências. E tal plano tinha principalmente um propósito: alterar o quadro ideológico vigente no que diz respeito ao comportamento das mulheres e, naturalmente, o dos homens seus contemporâneos.
Senão, vejamos: o primeiro livro escrito por Nísia Floresta é também o primeiro de que se tem notícia no Brasil que trata dos direitos das mulheres à instrução e ao trabalho, e que exige que as mulheres sejam consideradas como seres inteligentes e merecedoras de respeito pela sociedade. Este livro, publicado em 1832 em Recife (PE), tem o sugestivo título de Direitos das mulheres e injustiça dos homens, e, quando surgiu, Nísia tinha apenas 22 anos e a grande maioria das mulheres brasileiras vivia enclausurada em preconceitos, sem qualquer direito que não fosse o de ceder e aquiescer sempre à vontade masculina.
No ano seguinte - 1833 - saiu uma segunda edição e, em 1839, ainda uma terceira, no Rio de Janeiro. Direitos das mulheres de Nísia Floresta foi inspirado no livro de Mary Wollstonecraft, a feminista inglesa: Vindications of the Rights of Woman. Só que, ao invés de fazer simplesmente uma tradução, a autora brasileira aponta os principais preconceitos existentes no Brasil contra seu sexo, identifica as causas desse preconceito, ao mesmo tempo em que desmistifica a idéia dominante da superioridade masculina.
Tais reflexões não encontraram eco entre os contemporâneos e são o testemunho do quanto Nísia Floresta representava de exceção em meio à massa de mulheres submissas, analfabetas e anônimas. Foi esse livro que deu à autora o título de precursora do feminismo no Brasil e, talvez, até mesmo da América Latina, pois não existem registros de textos anteriores realizados com estas intenções.
O texto revolucionário de Mary Wollstonecraft havia sido publicado em Londres em 1792, como uma resposta à Declaração universal dos direitos do homem. Neste mesmo ano surgiu a tradução francesa e nos anos seguintes diversas outras edições. Rapidamente o livro se tornou conhecido e repercutiu pela Europa e Estados Unidos consagrando o nome de sua autora como a pioneira na defesa dos direitos da mulher.
Quatro décadas mais tarde seria a vez de Nísia Floresta inscrever seu nome nesta história ao fazer a tradução livre deste livro, baseada na versão francesa. E aí está a grande questão. Na verdade Nísia Floresta não realiza uma tradução, no sentido convencional, do texto da feminista. Ela realiza sim, um outro texto, o seu texto sobre os direitos das mulheres. Mary Wollstonecraft lhe deu a motivação ao colocar em letra impressa questões pertinentes à mulher inglesa, voltadas para o público de seu país. Nísia empreende então uma "antropofagia libertária" e, poderíamos ainda acrescentar: não como opção, mas até como uma fatalidade histórica. Na deglutição geral das idéias estrangeiras aqui chegadas, era comum promover-se uma acomodação das mesmas ao cenário nacional. É o que ela faz. Assimila as concepções de Mary Wollstonecraft e devolve um outro produto, pessoal, em que cada palavra é vivida, em que os conceitos surgem das páginas como algo visceral, extraídos da própria experiência e mediatizadas pelo intelecto.
Não é, portanto, o texto inglês que se conhece ao ler estes Direitos das mulheres e injustiça dos homens. Ainda está para ser feita a sua tradução em língua portuguesa. Temos sim, nesta tradução livre, talvez o texto fundante do feminismo brasileiro, se o vemos como uma nova escritura, ainda que inspirado na leitura de outro. Vejo-o como uma resposta brasileira ao texto inglês; a nossa autora se colocando em pé de igualdade com a Wollstonecraft e até com o pensamento europeu, e cumprindo o importante papel de elo entre as idéias européias e a realidade nacional.
Em sua essência, os Direitos das mulheres de Nísia Floresta se encontram com os Rights of woman,de Mary Wollstonecraft, tanto na denúncia da mulher como "classe oprimida" como na reivindicação de uma sociedade mais justa, em que ela seja respeitada e tenha os mesmos direitos. Também são pontos comuns a denúncia da superioridade masculina apoiada na força física, a valorização da função materna, a educação como o meio eficaz de promoção feminina e o aparato filosófico de feição iluminista. No mais, os textos se distanciam tomando cada qual o seu rumo, segundo as motivações das autoras, o público a que se destinavam e as peculiaridades da condição feminina num e noutro lugar.
Por exemplo: enquanto a feminista inglesa dedica seu livro ao senhor Talleyrand-Périgord - o antigo bispo de Autun e líder moderado da Revolução Francesa - não exatamente para homenageá-lo, mas como forma de lhe responder e contestar suas idéias sobre a educação feminina, Nísia Floresta dedica seus Direitos às mulheres brasileiras e aos jovens académicos de seu tempo. E é fácil entender porquê. As mulheres porque é delas que trata e por elas escreve. E aos acadêmicos porque, afinal de contas, eram eles os representantes legítimos da elite pensante do país, aqueles que poderiam, se quisessem, mudar os rumos dos acontecimentos. Foi desta geração, sabemos bem, que saíram os abolicionistas, os republicanos e também uns poucos - bem poucos - defensores dos direitos da mulher.
Nísia Floresta questiona em 1832 o porquê de não haver mulheres ocupando cargos de comando, tais como de general, almirante, ministro de estado e outras chefias. Ou ainda, porque não estão elas nas cátedras universitárias, exercendo a medicina, a magistratura ou a advocacia, uma vez que têm a mesma capacidade que os homens. Como se vê, ela vai fundo em suas intenções de acender o debate e de abalar as eternas verdades de nossas elites patriarcais.
E, assim, à medida que nos deixamos envolver pelo discurso nisiano, maior se torna nossa admiração por esta figura inovadora e audaciosa. Se Mary Wollstonecraft foi a primeira na Grã-Bretanha a defender os direitos da mulher; no cenário nacional coube a Nísia Floresta o privilégio de praticamente deflagrar a formação de uma consciência feminista. Se considerarmos a contribuição nisiana a esse processo, seu papel de fundadora e sua trajetória militante, num momento histórico de verdadeiro obscurantismo em relação aos direitos femininos, seus vacilos, contradições e certas posturas que hoje interpretaríamos como ingênuas e pueris, afiguram-se menores diante do aspecto pioneiro de sua obra.
Em outros livros ela continuará a tratar da temática destacando a importância da educação feminina para a mulher e a sociedade. São eles: Conselhos a minha filha, de 1842; Opúsculo humanitário, de 1853; A Mulher, de 1859; além de algumas novelas dedicadas às jovens estudantes de seu colégio. Nesses escritos encontramos desde conselhos de como as meninas deviam se comportar, os deveres esperados de uma filha e histórias de cunho didático-moralista, até minuciosas e ricas explanações acerca da história da condição feminina em diversas civilizações e em diferentes épocas.
Em Opúsculo Humanitário, por exemplo, que reúne sessenta e dois artigos sobre a educação já publicados nos principais jornais da corte, Nísia Floresta tece comentários sobre a Ásia, a África, a Oceania, a Europa e a América do Norte, antes de tratar do Brasil e da mulher brasileira, sempre observando a relação existente entre o desenvolvimento intelectual e material do país (ou o seu atraso), com o lugar ocupado pela mulher. Nísia, em consonância com intelectuais da época, defende a tese de que o progresso de uma sociedade depende da educação que era oferecida à mulher; e que só a instrução, aliada à educação moral, dariam maior dignidade e fariam da mulher uma melhor esposa e melhor mãe. Esses, aliás, seriam precisamente os objetivos da educação das meninas: torná-las conscientes de seus deveres e papéis sociais.
Hoje, preocupações como estas de Nísia Floresta, podem soar, a ouvidos menos atentos, como algo ultrapassado e até reacionário. Apenas, é preciso não perder de vista a repentina valorização da mulher ocorrida em meados do século XIX, a partir mesmo do redimensionamento da maternidade enquanto papel social. Se num momento a presença da mulher era inexpressiva em conseqüência da rígida estratificação social que privilegiava o masculino; em outro, a figura feminina transformava-se em centro das atenções, devido à valorização de sua função biológica exclusiva: a maternidade. Tais alterações tiveram, naturalmente, uma grande repercussão em meio às intelectuais que vislumbraram, aí, a possibilidade de as mulheres adquirirem status e poder diante da opinião pública.
Dissemos que Nísia estava à frente de seu tempo. Também na abordagem de outras questões, como quando trata do índio brasileiro, ela foi precursora. Em um longo poema de 712 versos - intitulado A lágrima de um Caeté, de 1849 - encontramos interessantes posicionamentos da autora a respeito do indígena. Uma rápida leitura do texto permite a identificação de inúmeros elementos marcantes do romantismo como a lusofobia, o elogio da natureza e a exaltação de valores indígenas. A novidade é que o poema nos traz não a visão do índio-herói que luta, presente na maioria dos textos indianistas conhecidos e, sim, o ponto-de-vista dos derrotados, do índio vencido consciente e inconformado com a opressão de sua raça pelo branco invasor.
Não cabem, pois, em seu índio, os epítetos de inocente, de puro e de portador daquela "bondade natural", idealizados nas teorias filosóficas européias e adotadas pelos demais escritores brasileiros. O contato com o homem branco revelou-se pernicioso demais para ele (e a história nos mostra) com conseqüências irreversíveis. A dor do indígena vem precisamente da consciência dessa irreversibilidade e do meio-lugar (ou lugar nenhum) em que se encontra. O discurso da narradora, absolutamente preso ao do índio e às vezes até se confundindo com o dele, acrescenta um dado fundamental: o da perda de identidade por parte do silvícola, que os escritores românticos do período tentavam escamotear.
No mesmo ano da publicação de A lágrima de um Caeté, Nísia Floresta viajou para a Europa, onde permaneceu vinte e oito anos de sua vida. E, nessa época, no auge da maturidade intelectual, relacionou-se com grandes escritores, como Alexandre Herculano, Dumas (pai), Lamartine, Duvernoy, Victor Hugo, George Sand, Manzoni, Azeglio e Auguste Comte, viajando durante anos seguidos pela Itália, Portugal, Alemanha, Bélgica, Grécia, França e Inglaterra.
Em Portugal ela residiu durante o ano de 1851, quando teve oportunidade de viajar pelo país e fortalecer os laços de amizade com Alexandre Herculano e Antonio Feliciano de Castilho. No Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, aliás, existe um exemplar de Opúsculo humanitário dedicado a Herculano.
Das muitas viagens que realizou pela Europa resultaram alguns livros que, bem ao gosto da época, contém suas impressões dos lugares que ia conhecendo. Só que Nísia Floresta não realiza simples relatos de viagem. Ela descreve com riqueza de detalhes as cidades, as igrejas, os museus, os parques, as bibliotecas e monumentos, detendo-se nos tipos humanos e comentando tudo que observava sempre com muita sensibilidade e erudição. Itinerário de uma viagem à Alemanha, de 1857, e Três anos na Itália, seguidos de uma Viagem à Grécia (em dois volumes, de 1864 e 1872) são os títulos desses livros escritos e publicados em língua francesa. Apenas o primeiro foi traduzido para o português, em 1982, depois de mais de cem anos em língua estrangeira; o outro, apesar de considerado por mais de um crítico uma obra-prima, onde ela teria alcançado a culminância de seu esplendor intelectual, continua inédito em língua portuguesa. E Três anos na Itália é interessante porque contém anotações do ano anterior à unificação italiana, a descrição da luta, dos sentimentos populares, do clima revolucionário e ainda nos revela a admiração da autora pelos líderes, Garibaldi e Azeglio, com quem se correspondeu durante algum tempo.
Um outro trabalho, dos mais importantes, é Scintille d' un'anima brasiliana, publicado em Florença, na Itália, no ano de 1859. Este livro contém cinco ensaios que tratam da educação de jovens, da mulher européia, da pátria distante e das saudades que ela sentia de seu país, após tantos anos ausente. Um dos textos, intitulado "A Mulher", trata da mulher francesa de meados do século XIX, que a autora critica pelo comportamento superficial e mundano. Nísia se antecipa aos governantes e pensadores franceses e condena - nesse ensaio - o costume das mulheres de abandonar os filhos recém-nascidos para serem amamentados e criados distantes, no interior do país, por mulheres camponesas. Em outro ensaio, "O Brasil", também publicado em Paris em 1871, ela resume a história da nação brasileira, fala dos recursos econômicos, das riquezas conhecidas e latentes, dos sábios e escritores mais conhecidos. Sua intenção era, além de fazer propaganda da pátria no estrangeiro, desfazer os preconceitos e mentiras que predominavam na Europa, acerca do Brasil.1
Assim, ainda que rapidamente e nos limites desta palestra, tentei mostrar a importância do resgate de uma figura como Nísia Floresta na história intelectual da mulher brasileira. No momento em que se pesquisa e se constrói a história intelectual da mulher brasileira, é hora de dar a Nísia Floresta o lugar de destaque que ela de fato merece e reconhecer o ineditismo de seus escritos. A autora - que tão longe iria em sua trajetória de vida - foi sim uma mulher "educada" entre as que surgiram no Brasil patriarcal e também uma das raras mulheres de letras de seu tempo. Mas foi mais ainda. Nísia Floresta foi também uma brasileira erudita e "ilustrada", como bem poucas em nossa história.

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