domingo, 28 de outubro de 2012

NISIA FLORESTA BRASILEIRA AUGUSTA


Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885)
A história da luta feminina em busca de seus direitos no Brasil tem seu início em Nísia Floresta Brasileira Augusta. A esta mulher devemos as primeiras e mais importantes páginas dessa luta, pela coragem revelada em seus escritos e pelo ineditismo e ousadia de suas idéias.
Este nome pertenceu a uma potiguar - Dionísia Gonçalves Pinto - nascida em 1810 e que, após residir em diversos estados do Brasil, mudou-se para a Europa onde passou o resto de sua vida. Nísia Floresta morreu em 1885, em Rouen, no interior da França.
Neste contexto, enquanto que a grande maioria das mulheres brasileiras vivia trancafiada em casa sem nenhum direito; quando o ditado popular dizia que "o melhor livro é a almofada e o bastidor" e tinha foros de verdade para muitos, Nísia Floresta dirigia um colégio para moças no Rio de Janeiro e escrevia livros e mais livros para defender os direitos das mulheres, dos índios e dos escravos.
Nísia Floresta deve ter sido uma das primeiras mulheres no Brasil a romper os limites do espaço privado e a publicar textos em jornais da chamada grande imprensa. E foram muitas as colaborações na forma de crônicas, de contos, de poesias e de ensaios.  Basta lembrarmos que foi em 1816 que a imprensa chegou ao país, para acentuar o traço da modernidade de Nísia Floresta: sua constante presença na imprensa nacional, desde 1830, sempre comentando as questões mais polêmicas da época.
Naturalmente - até como não podia deixar de ser - Nísia recebeu em troca o desprezo, a difamação e o esquecimento, principalmente da parte de seus conterrâneos. Sua figura foi envolvida por um manto de mistério em sua terra natal e durante algumas dezenas de anos não se ouviu falar dela. O pouco que se ouvia estava marcado pelo preconceito, ou impregnado da surpresa de se encontrar, em tempos passados, uma história de vida como a sua e uma obra contendo reflexões tão avançadas para a época. O fato de estar à frente de seu tempo custou-lhe, no mínimo, o não-reconhecimento de seu talento. Seu nome até hoje não costuma ser citado na história da Literatura Brasileira como escritora romântica e muito menos na História da Educação feminina, como educadora.
Com uma rápida apresentação de alguns de seus escritos, vocês podem conhecer um pouco mais as diversas vertentes da militância da autora. O interessante, numa leitura de sua obra, é observar como os textos dialogam entre si, um iluminando o outro, como peças complementares de um mesmo plano de ação prática, qual seja, formar e modificar consciências. E tal plano tinha principalmente um propósito: alterar o quadro ideológico vigente no que diz respeito ao comportamento das mulheres e, naturalmente, o dos homens seus contemporâneos.
Senão, vejamos: o primeiro livro escrito por Nísia Floresta é também o primeiro de que se tem notícia no Brasil que trata dos direitos das mulheres à instrução e ao trabalho, e que exige que as mulheres sejam consideradas como seres inteligentes e merecedoras de respeito pela sociedade. Este livro, publicado em 1832 em Recife (PE), tem o sugestivo título de Direitos das mulheres e injustiça dos homens, e, quando surgiu, Nísia tinha apenas 22 anos e a grande maioria das mulheres brasileiras vivia enclausurada em preconceitos, sem qualquer direito que não fosse o de ceder e aquiescer sempre à vontade masculina.
No ano seguinte - 1833 - saiu uma segunda edição e, em 1839, ainda uma terceira, no Rio de Janeiro. Direitos das mulheres de Nísia Floresta foi inspirado no livro de Mary Wollstonecraft, a feminista inglesa: Vindications of the Rights of Woman. Só que, ao invés de fazer simplesmente uma tradução, a autora brasileira aponta os principais preconceitos existentes no Brasil contra seu sexo, identifica as causas desse preconceito, ao mesmo tempo em que desmistifica a idéia dominante da superioridade masculina.
Tais reflexões não encontraram eco entre os contemporâneos e são o testemunho do quanto Nísia Floresta representava de exceção em meio à massa de mulheres submissas, analfabetas e anônimas. Foi esse livro que deu à autora o título de precursora do feminismo no Brasil e, talvez, até mesmo da América Latina, pois não existem registros de textos anteriores realizados com estas intenções.
O texto revolucionário de Mary Wollstonecraft havia sido publicado em Londres em 1792, como uma resposta à Declaração universal dos direitos do homem. Neste mesmo ano surgiu a tradução francesa e nos anos seguintes diversas outras edições. Rapidamente o livro se tornou conhecido e repercutiu pela Europa e Estados Unidos consagrando o nome de sua autora como a pioneira na defesa dos direitos da mulher.
Quatro décadas mais tarde seria a vez de Nísia Floresta inscrever seu nome nesta história ao fazer a tradução livre deste livro, baseada na versão francesa. E aí está a grande questão. Na verdade Nísia Floresta não realiza uma tradução, no sentido convencional, do texto da feminista. Ela realiza sim, um outro texto, o seu texto sobre os direitos das mulheres. Mary Wollstonecraft lhe deu a motivação ao colocar em letra impressa questões pertinentes à mulher inglesa, voltadas para o público de seu país. Nísia empreende então uma "antropofagia libertária" e, poderíamos ainda acrescentar: não como opção, mas até como uma fatalidade histórica. Na deglutição geral das idéias estrangeiras aqui chegadas, era comum promover-se uma acomodação das mesmas ao cenário nacional. É o que ela faz. Assimila as concepções de Mary Wollstonecraft e devolve um outro produto, pessoal, em que cada palavra é vivida, em que os conceitos surgem das páginas como algo visceral, extraídos da própria experiência e mediatizadas pelo intelecto.
Não é, portanto, o texto inglês que se conhece ao ler estes Direitos das mulheres e injustiça dos homens. Ainda está para ser feita a sua tradução em língua portuguesa. Temos sim, nesta tradução livre, talvez o texto fundante do feminismo brasileiro, se o vemos como uma nova escritura, ainda que inspirado na leitura de outro. Vejo-o como uma resposta brasileira ao texto inglês; a nossa autora se colocando em pé de igualdade com a Wollstonecraft e até com o pensamento europeu, e cumprindo o importante papel de elo entre as idéias européias e a realidade nacional.
Em sua essência, os Direitos das mulheres de Nísia Floresta se encontram com os Rights of woman,de Mary Wollstonecraft, tanto na denúncia da mulher como "classe oprimida" como na reivindicação de uma sociedade mais justa, em que ela seja respeitada e tenha os mesmos direitos. Também são pontos comuns a denúncia da superioridade masculina apoiada na força física, a valorização da função materna, a educação como o meio eficaz de promoção feminina e o aparato filosófico de feição iluminista. No mais, os textos se distanciam tomando cada qual o seu rumo, segundo as motivações das autoras, o público a que se destinavam e as peculiaridades da condição feminina num e noutro lugar.
Por exemplo: enquanto a feminista inglesa dedica seu livro ao senhor Talleyrand-Périgord - o antigo bispo de Autun e líder moderado da Revolução Francesa - não exatamente para homenageá-lo, mas como forma de lhe responder e contestar suas idéias sobre a educação feminina, Nísia Floresta dedica seus Direitos às mulheres brasileiras e aos jovens académicos de seu tempo. E é fácil entender porquê. As mulheres porque é delas que trata e por elas escreve. E aos acadêmicos porque, afinal de contas, eram eles os representantes legítimos da elite pensante do país, aqueles que poderiam, se quisessem, mudar os rumos dos acontecimentos. Foi desta geração, sabemos bem, que saíram os abolicionistas, os republicanos e também uns poucos - bem poucos - defensores dos direitos da mulher.
Nísia Floresta questiona em 1832 o porquê de não haver mulheres ocupando cargos de comando, tais como de general, almirante, ministro de estado e outras chefias. Ou ainda, porque não estão elas nas cátedras universitárias, exercendo a medicina, a magistratura ou a advocacia, uma vez que têm a mesma capacidade que os homens. Como se vê, ela vai fundo em suas intenções de acender o debate e de abalar as eternas verdades de nossas elites patriarcais.
E, assim, à medida que nos deixamos envolver pelo discurso nisiano, maior se torna nossa admiração por esta figura inovadora e audaciosa. Se Mary Wollstonecraft foi a primeira na Grã-Bretanha a defender os direitos da mulher; no cenário nacional coube a Nísia Floresta o privilégio de praticamente deflagrar a formação de uma consciência feminista. Se considerarmos a contribuição nisiana a esse processo, seu papel de fundadora e sua trajetória militante, num momento histórico de verdadeiro obscurantismo em relação aos direitos femininos, seus vacilos, contradições e certas posturas que hoje interpretaríamos como ingênuas e pueris, afiguram-se menores diante do aspecto pioneiro de sua obra.
Em outros livros ela continuará a tratar da temática destacando a importância da educação feminina para a mulher e a sociedade. São eles: Conselhos a minha filha, de 1842; Opúsculo humanitário, de 1853; A Mulher, de 1859; além de algumas novelas dedicadas às jovens estudantes de seu colégio. Nesses escritos encontramos desde conselhos de como as meninas deviam se comportar, os deveres esperados de uma filha e histórias de cunho didático-moralista, até minuciosas e ricas explanações acerca da história da condição feminina em diversas civilizações e em diferentes épocas.
Em Opúsculo Humanitário, por exemplo, que reúne sessenta e dois artigos sobre a educação já publicados nos principais jornais da corte, Nísia Floresta tece comentários sobre a Ásia, a África, a Oceania, a Europa e a América do Norte, antes de tratar do Brasil e da mulher brasileira, sempre observando a relação existente entre o desenvolvimento intelectual e material do país (ou o seu atraso), com o lugar ocupado pela mulher. Nísia, em consonância com intelectuais da época, defende a tese de que o progresso de uma sociedade depende da educação que era oferecida à mulher; e que só a instrução, aliada à educação moral, dariam maior dignidade e fariam da mulher uma melhor esposa e melhor mãe. Esses, aliás, seriam precisamente os objetivos da educação das meninas: torná-las conscientes de seus deveres e papéis sociais.
Hoje, preocupações como estas de Nísia Floresta, podem soar, a ouvidos menos atentos, como algo ultrapassado e até reacionário. Apenas, é preciso não perder de vista a repentina valorização da mulher ocorrida em meados do século XIX, a partir mesmo do redimensionamento da maternidade enquanto papel social. Se num momento a presença da mulher era inexpressiva em conseqüência da rígida estratificação social que privilegiava o masculino; em outro, a figura feminina transformava-se em centro das atenções, devido à valorização de sua função biológica exclusiva: a maternidade. Tais alterações tiveram, naturalmente, uma grande repercussão em meio às intelectuais que vislumbraram, aí, a possibilidade de as mulheres adquirirem status e poder diante da opinião pública.
Dissemos que Nísia estava à frente de seu tempo. Também na abordagem de outras questões, como quando trata do índio brasileiro, ela foi precursora. Em um longo poema de 712 versos - intitulado A lágrima de um Caeté, de 1849 - encontramos interessantes posicionamentos da autora a respeito do indígena. Uma rápida leitura do texto permite a identificação de inúmeros elementos marcantes do romantismo como a lusofobia, o elogio da natureza e a exaltação de valores indígenas. A novidade é que o poema nos traz não a visão do índio-herói que luta, presente na maioria dos textos indianistas conhecidos e, sim, o ponto-de-vista dos derrotados, do índio vencido consciente e inconformado com a opressão de sua raça pelo branco invasor.
Não cabem, pois, em seu índio, os epítetos de inocente, de puro e de portador daquela "bondade natural", idealizados nas teorias filosóficas européias e adotadas pelos demais escritores brasileiros. O contato com o homem branco revelou-se pernicioso demais para ele (e a história nos mostra) com conseqüências irreversíveis. A dor do indígena vem precisamente da consciência dessa irreversibilidade e do meio-lugar (ou lugar nenhum) em que se encontra. O discurso da narradora, absolutamente preso ao do índio e às vezes até se confundindo com o dele, acrescenta um dado fundamental: o da perda de identidade por parte do silvícola, que os escritores românticos do período tentavam escamotear.
No mesmo ano da publicação de A lágrima de um Caeté, Nísia Floresta viajou para a Europa, onde permaneceu vinte e oito anos de sua vida. E, nessa época, no auge da maturidade intelectual, relacionou-se com grandes escritores, como Alexandre Herculano, Dumas (pai), Lamartine, Duvernoy, Victor Hugo, George Sand, Manzoni, Azeglio e Auguste Comte, viajando durante anos seguidos pela Itália, Portugal, Alemanha, Bélgica, Grécia, França e Inglaterra.
Em Portugal ela residiu durante o ano de 1851, quando teve oportunidade de viajar pelo país e fortalecer os laços de amizade com Alexandre Herculano e Antonio Feliciano de Castilho. No Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, aliás, existe um exemplar de Opúsculo humanitário dedicado a Herculano.
Das muitas viagens que realizou pela Europa resultaram alguns livros que, bem ao gosto da época, contém suas impressões dos lugares que ia conhecendo. Só que Nísia Floresta não realiza simples relatos de viagem. Ela descreve com riqueza de detalhes as cidades, as igrejas, os museus, os parques, as bibliotecas e monumentos, detendo-se nos tipos humanos e comentando tudo que observava sempre com muita sensibilidade e erudição. Itinerário de uma viagem à Alemanha, de 1857, e Três anos na Itália, seguidos de uma Viagem à Grécia (em dois volumes, de 1864 e 1872) são os títulos desses livros escritos e publicados em língua francesa. Apenas o primeiro foi traduzido para o português, em 1982, depois de mais de cem anos em língua estrangeira; o outro, apesar de considerado por mais de um crítico uma obra-prima, onde ela teria alcançado a culminância de seu esplendor intelectual, continua inédito em língua portuguesa. E Três anos na Itália é interessante porque contém anotações do ano anterior à unificação italiana, a descrição da luta, dos sentimentos populares, do clima revolucionário e ainda nos revela a admiração da autora pelos líderes, Garibaldi e Azeglio, com quem se correspondeu durante algum tempo.
Um outro trabalho, dos mais importantes, é Scintille d' un'anima brasiliana, publicado em Florença, na Itália, no ano de 1859. Este livro contém cinco ensaios que tratam da educação de jovens, da mulher européia, da pátria distante e das saudades que ela sentia de seu país, após tantos anos ausente. Um dos textos, intitulado "A Mulher", trata da mulher francesa de meados do século XIX, que a autora critica pelo comportamento superficial e mundano. Nísia se antecipa aos governantes e pensadores franceses e condena - nesse ensaio - o costume das mulheres de abandonar os filhos recém-nascidos para serem amamentados e criados distantes, no interior do país, por mulheres camponesas. Em outro ensaio, "O Brasil", também publicado em Paris em 1871, ela resume a história da nação brasileira, fala dos recursos econômicos, das riquezas conhecidas e latentes, dos sábios e escritores mais conhecidos. Sua intenção era, além de fazer propaganda da pátria no estrangeiro, desfazer os preconceitos e mentiras que predominavam na Europa, acerca do Brasil.1
Assim, ainda que rapidamente e nos limites desta palestra, tentei mostrar a importância do resgate de uma figura como Nísia Floresta na história intelectual da mulher brasileira. No momento em que se pesquisa e se constrói a história intelectual da mulher brasileira, é hora de dar a Nísia Floresta o lugar de destaque que ela de fato merece e reconhecer o ineditismo de seus escritos. A autora - que tão longe iria em sua trajetória de vida - foi sim uma mulher "educada" entre as que surgiram no Brasil patriarcal e também uma das raras mulheres de letras de seu tempo. Mas foi mais ainda. Nísia Floresta foi também uma brasileira erudita e "ilustrada", como bem poucas em nossa história.

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quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Outras concepções de ideologia


O termo ideologia possui vários significados:

Sentido originário: ideologia é uma palavra criada por Destutt de Tracy, filósofo, político, soldado francês e líder da escola filosófica dos Ideólogos, no tempo da Revolução Francesa, em 1801, quando em seu livro Projeto de elementos de ideologia empregou-a como ciência que tem por objeto o estudo das idéias (fatos da consciência). Karl Marx e Friedrich Engels deram-lhe sentido político, em meados do século XIX. 

Sentido pejorativo: ideologia corresponde a idéias que se encontram deslocados em relação aos fatos reais; pode ser confundida com mentira ou utopia. Daí o termo ideólogo referir-se àquele que voa em seu pensamento, sonha com uma sociedade em outras bases. Quando o pensamento teórico se desenvolve sobre os próprios dados e dificulta sua aplicação, impedindo uma explicação clara do real, também pode ser entendido no sentido pejorativo.
Sentido doutrinário: ideologia é entendida como o conjunto de idéias que exerce influência sobre grupos sociais e legitima formas de ação. Nesse sentido, a ideologia procura convencer para ganhar adeptos a doutrinas políticas, econômicas, filosóficas, religiosas, morais, que inspiram governos e partidos políticos, por exemplo.

FONTE: ______________________
(AAVV. Para filosofar. São Paulo: Scipione, 2002, p. 162)

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Além-do-homem, O

O ALÉM-DO-HOMEM: JOVENS PARA SEMPRE
[*]Pablo de Araújo Batista

Se a superação do homem já era proposta por Nietzsche, por que a humanidade não pode usufruir das tecnologias para proporcionar conforto e uma vida mais longa? Mas pode a tecnologia oferecer alívio à angústia e respostas à busca do sentido da vida?

Certa vez, o futurólogo Ray Kurzweil disse: "A principal questão política e filosófica do século XXI será a definição de quem somos".
Para falar de aprimoramento é preciso limpar o caminho que leva à 
lembrança da criação de uma raça superior, proposta por /-litler, e os 
fantasmas do nazismoCaixa de texto: Para falar de aprimoramento é preciso limpar o caminho que leva à lembrança da criação de uma raça superior, proposta por Hitler, e os fantasmas do nazismo Embora essa questão ainda não tenha a relevância necessária (a não ser em casos relacionados ao aborto), nesse início de século, a Biotecnologia tem nos levado a considerar a importância desse questionamento. À medida que a manipulação do código genético humano se torna realidade, em breve poderemos aprimorar nossa constituição física, intelectual e emocional, proporcionando a nós e à próxima geração a possibilidade de prolongarmos nossa existência e de transformarmos radicalmente o que concebemos como "humanidade".
Mas será que estamos prontos para alçar esse voo? Estamos prontos para deixar para trás o homem como o conhecemos, ou seja, debilitado e limitado, permitindo o surgimento de um novo homem, aprimorado e com suas capacidades naturais ampliadas?
O aprimoramento a partir da Engenharia Genética e da utilização de células-tronco embrionárias desponta no horizonte como um campo altamente promissor. Mas como aparentemente é impossível tocar nesse assunto sem evocar os "demônios" do nazismo e as pretensões de Hitler em criar uma raça superior, além de reviver as ideias de Eugenia de Francis Galton, convém limpar o caminho que nos leva a um futuro promissor dos entulhos depositados pelo pensamento dogmático. Somente dessa maneira poderemos analisar com clareza a possibilidade de aperfeiçoamento da espécie humana por meio das novas técnicas de manipulação genética, e os prováveis desdobramentos éticos desse tipo de intervenção.

  


POR QUE APRIMORAR?
Caixa de texto:  
Nietzsche usava a metáfora da corda bamba para propor a superação do homem, embora não se referisse a uma transformação tecnológica, mas a um refinamento intelectual 

O profeta Zaratustra, criação de Friedrich Nietzsche, prenunciou o surgimento de um novo tipo de homem ao dizer: "Eu lhes ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizestes para o superar? Todos os seres até agora criaram algo além de si mesmos, e vós quereis ser o refluxo deste grande fluxo, preferis retomar aos animais em vez de superar o homem?"( NIETZSCHE, Assim/alou Zaratustra) Obviamente, ao proferir essas palavras, Nietzsche não estava pensando em uma transformação tecnológica, mas em um refinamento cultural ou crescimento pessoal de poucos indivíduos excepcionais que seriam capazes de dominar sua própria natureza e abandonar a "moral dos escravos" advogada pelo Cristianismo.
Embora estivesse no caminho certo, a concepção de Nietzsche sobre o surgimento de um "novo homem" é diferente da concepção abordada pelo pensamento transhumanista. O transhumanista está preocupado com as alterações em nosso conceito de humano a partir da utilização crescente de tecnologias de aprimoramento. Essas novas tecnologias nos possibilitam alguns questionamentos importantes, tais como: somos bons o suficiente? Estamos realmente no ápice do desenvolvimento evolutivo? Será que não podemos encontrar novas formas de vivência?
Caixa de texto:  
O transhumanismo propõe a evolução e aprimoramento do homem por meio da aplicação maciça de tecnologias e medicamentos
Podemos afirmar com certo grau de orgulho que estamos muito bem adaptados ao nosso meio, pois evidentemente o moldamos à nossa imagem. No entanto, isso nos leva à lamentável constatação de que, sem pressão evolutiva para impor uma seleção natural, ficaremos estagnados e sem grandes aprimoramentos, limitando nosso potencial humano. Além dessa constatação, outros fatores podem nos impelir ao aprimoramento. Por exemplo, existem alguns causadores de sofrimento com os quais a humanidade tem um longo histórico de experiência, mas, devido à sua gravidade, nunca recebeu a devida atenção. São eventos considerados "naturais" ou
"a vontade de Deus", tais como o envelhecimento, graves doenças como o mal de Alzheimer e limitadores de existência como a morte.
Nossa espécie acostumou-se a considerar essas limitações como normais, já que parece impossível deter o envelhecimento, acabar com algumas doenças e, em último caso, evitar a morte. Mas, na medida em que progredimos em direção a uma sociedade do conhecimento e da tecnologia, muitos desses problemas serão gradualmente amenizados e, por fim, eliminados. A possibilidade de diminuir em alto grau o sofrimento no mundo causado pelas inúmeras formas de enfermidades e pelos danos causados pelo envelhecimento, já é, em si, um bom argumento moral a favor do aprimoramento.


IMPLICAÇÕES DA IMORTALIDADE

Caixa de texto:  
A evolução tecnológica se desenvolve no sentido de evitar ou protelar um dos maiores mistérios do 
homem: a morte 
Alterar mesmo que remotamente algum desses paradigmas teria um imenso impacto na sociedade como a conhecemos. Imagine por um momento o impacto político, econômico e social se conseguíssemos ampliar em 20, 30 ou 50 anos a expectativa média da vida de uma pessoa comum. Qual seria o impacto econômico na previdência social de um país como o Japão, onde as mulheres têm uma expectativa de vida em torno dos 83,6 anos, se elas pudessem viver em média até os 133 anos? Em uma sociedade voltada para o trabalho e a produção em massa, pessoas que vivessem até 100, 120 ou 150 anos sem produzir nada provavelmente se tornariam um peso para o Estado (pois viver mais somente valerá a pena se além do corpo as propriedades cognitivas também forem sustentadas e as pessoas continuarem a trabalhar em seus projetos. Para isso seriam necessários o desenvolvimento e a aplicação de drogas de aprimoramento mental, bem como de implantes cerebrais que sustentem e lapidem nossas capacidades cognitivas. Essa é uma área já em andamento, mas isso é assunto para outro artigo).
Caixa de texto:  
Para geneticista Aubrey de Grey, a primeira pessoa a viver 1.000 anos já esteja viva hoje, e ela se beneficiará de tratamentos cada vez mais avançados, que proporcionarão o que ele chama de "velocidade de escape" 

Uma das perspectivas atraentes no desenvolvimento seguro da Engenharia Genética é a possibilidade de prolongarmos nossa juventude e nosso tempo de existência. Graças a alguns fatores, boa alimentação, novas normas de higiene, saneamento básico, desenvolvimento de vacinas e grandes avanço na área médica e tecnológica, o atual momento histórico é comprovadamente o período em que mais tempo podemos viver.
Por volta de 1760, no início da Revolução Industrial, a expectativa de vida na América do Norte e na Europa Setentrional era de meros 37 anos, enquanto hoje, nos melhores lugares do mundo para se viver, as pessoas têm expectativa de vida de mais de 80 anos. Em alguns lugares privilegiados, como a Sardenha, uma ilha situada a aproximadamente 200 km da costa da Itália, ou em Okinawa, uma ilha do Japão, as pessoas vivem em média 12 anos a mais do que as pessoas de outras localidades do mundo, chegando tranquilamente e com vigor invejável aos 100 anos de idade ('Tedtalks: Zonas azuis. http://www.ted.com/talks/lang/por_br/dan_buettller_ how _to_live_to_be_100.htm/).
Evidentemente, se pudermos estender nossa existência por mais tempo com a manutenção da qualidade de vida, poderemos desenvolver e concluir projetos que muitas vezes os poucos 70 ou 80 anos não nos permitem. É frustrante pensar que
até mesmo tartarugas podem fazer melhor do que nós, já que muitas vivem tranquilamente por mais de 100 anos. O filósofo Nick Bostrom parece concordar com isso ao dizer: "Para jardineiros, educadores, acadêmicos, artistas, urbanistas, e aqueles que simplesmente apreciam observar e participar da variedade cultural ou política no show da vida, 70 anos é muitas vezes insuficiente para ver até mesmo um projeto completo em sua conclusão, que dirá para tarefas e muitos projetos em sequência (O ensaio Transhumanism values de Nick Bostrom já possui tradução para o português feita pelo autor desse artigo, e em breve estará disponível em: www.ierfh.org.br.).
Caixa de texto:  
Como encararemos em nossa sociedade um ser emulado? Esta é uma das questões éticas relevantes para os debates em torno da aplicação de novas terapias genéticas, e fundamentais para a criação de uma sociedade preparada para as novas transformações (O britânico Aubrey de Grey acredita que a injeção constante de células-tronco pode prolongar a vida para muito mais de 100 anos)

No entanto, mesmo que com o passar do tempo possamos prolongar a expectativa de vida para pouco mais de 100 anos, parece implausível que cheguemos a viver 200, 500 ou até mesmo 1.000 anos, pois nossa estrutura física não suportaria o desgaste do tempo. A passagem do tempo é cruel para todos os objetos estacionários, e mesmo para os que se movem através do espaço. Mas isso não é o que pensa o geneticista britânico Aubrey de Grey, da Universidade de Cambridge. De Grey trabalha no que ele denomina de "Estratégia para Reparar Envelhecimento Insignificante" (Sens), que tem como objetivo reparar tecidos orgânicos danificados para rejuvenescer o corpo e permitir às pessoas uma vida útil indefinida. Segundo ele, a injeção constante de células-tronco em nosso corpo poderá compensar o desgaste sofrido por células deterioradas fazendo-nos viver mais de 100 anos('http://en. wikipedia. or g/wikit Str a tegies-for_Engineered_Negligible_Senescence).
Essas novas células implantadas são pluripotentes e podem se transformar em qualquer tipo de tecido do corpo humano como ossos, nervos, músculos e sangue, e substituir as células mortas ou danificadas pelo processo natural de divisão celular. Esse processo resultará em órgãos jovens para sempre.

 ADMIRÁVEL MUNDO NOVO
Caixa de texto:  
Muitas vezes criticadas, as tecnologias podem mitigar muitos males e sofrimentos vividos por doenças que não podem ser curadas na atualidade 

O nascimento de Louise Brown - o primeiro ser humano a nascer de um embrião fertilizado fora de um corpo humano - da ovelha Dolly e o desenvolvimento posterior na Engenharia Genética por meio das pesquisas com células-tronco embrionárias iniciaram um período de grande produtividade e progresso nas pesquisas biológicas. Esses avanços proporcionam esperança às pessoas que padecem com doenças neurodegenerativas como o mal de Parkinson, o mal de Alzheimer, a coreia de Huntington e a leucemia. Além disso, as novas técnicas podem facilitar a criação de tratamento para doenças crônicas, diabetes, câncer, doenças ósseas e anomalias sanguíneas.
Mas, ombro a ombro com os incalculáveis benefícios resultantes das terapias genéticas, andam as objeções éticas e religiosas às pesquisas com células-tronco. A manipulação genética, a clonagem terapêutica ou para fins de reprodução abrem as portas para inúmeras expectativas quanto ao futuro da humanidade, mas também acirram os debates éticos sobre a legitimidade de sua aplicação. Das origens possíveis de células-tronco embrionárias que podem ser utilizadas para a pesquisa científica, todas parecem suscitar questões éticas.
Caixa de texto:  
O prolongamento da vida pode trazer impactos econômicos e sociais importantes - em países como o Japão, por exemplo - e devem ser discutidos desde já 

O sábio rei Salomão escreveu: "Vê o trabalho do verdadeiro Deus, pois quem pode endireitar o que ele entortou?" (Eclesiastes Cap.7, Vers. 13). Para a maioria das pessoas, apenas Deus, a natureza ou o acaso pode interferir em nossa constituição biológica. Muitos temem o surgimento de um mercado de órgãos humanos e que embriões sejam criados apenas para pesquisa e depois sejam descartados como um produto sem utilidade. Os bioconservadores sustentam a antiga noção de que o momento da concepção é sagrado, pois todas as formas de vida fazem parte de um projeto divino. Segundo essa noção, toda forma de utilização de embriões ou fetos em pesquisas científicas é uma afronta à dignidade humana.
Muitos pensadores identificam outro problema com a manipulação genética, pois, segundo eles, a clonagem terapêutica levará à clonagem reprodutiva, e se já somos
capazes de clonar uma ovelha e outros mamíferos, o que nos impedirá de em breve criar um clone humano? Temendo que o Admirável mundo novo de Aldous Huxley
se torne realidade por meio dos bebês de prancheta, será que corremos o risco de criar um mundo com um novo sistema de castas indianas, onde as pessoas são separadas em classes hierárquicas compostas por Alfas, Betas e Gamas? Se criarmos essa nova forma de discriminação, as pessoas poderão ser selecionadas por suas aptidões ou vantagens genéticas, deixando os concebidos "artificialmente" no topo da sociedade e os concebidos "naturalmente" na parte inferior da civilização.



O QUE NOS FAZ HUMANOS
Caixa de texto:  
A expectativa de vida, como na época da Revolução Industrial, chegou a ser de menos de 40 anos. Vivemos uma fase em que a tecnologia proporcionou às pessoas a oportunidade de ampliar 
seus projetos de vida 

OS fetos e embriões têm direitos ou interesses que podem ser violados ou prejudicados por meio de sua instrumentalização?
Com a finalidade de aumentar o conhecimento científico e a criação de terapias que podem beneficiar milhares de pessoas que sofrem diariamente, podemos dispor de fetos e embriões para pesquisa? Os debates contemporâneos acerca das questões da legitimidade das pesquisas genéticas giram em torno de sabermos ou não se um feto ou um embrião podem ser considerados
humanos, e se possuem o mesmo direito à dignidade moral que possui uma pessoa totalmente formada e membro ativo da sociedade em que vivemos.
A maior parte dos argumentos contra a utilização do embrião ou de um feto em pesquisas genéticas parte da premissa de que é errado matar um ser humano inocente. Se considerarmos que um feto ou um embrião é um ser humano inocente, vamos concluir que é errado matá-los, e por isso utilizar uma vida humana mesmo em seus estágios iniciais para fins de pesquisas e depois descartá-la será considerado um crime.
Argumentos baseados nessa premissa partem da aceitação quase unânime de que qualquer vida humana é sagrada, pois faz parte de um planejamento divino. O dogma da santidade da vida humana é o que parece estar em jogo nos debates sobre a utilização do embrião para fins de experimentação. Esse antigo dogma parece ser um princípio absoluto, pois se cada vida humana é igualmente sagrada e inviolável, não é possível atribuir um valor a ela, pois perdê-la é o mesmo que perder tudo. Mas existem complicações com a proficuidade universal desse princípio conforme destaca o filósofo Daniel Dennett: "O que fazemos quando mais de uma vida humana está em jogo? Se cada vida é infinitamente valiosa, e nenhuma é mais valiosa do que outra, como vamos distribuir os poucos rins transplantáveis que estão disponíveis, por exemplo? A tecnologia moderna apenas exacerba as questões, que são obsoletas. Salomão enfrentou escolhas difíceis com sabedoria notável, e cada mãe que alguma vez teve alimento insuficiente para seus próprios filhos (sem falar nos filhos da vizinha) foi obrigada a se debater com a impraticabilidade de aplicar o princípio da Santidade da Vida Humana" (DENNETT, 2006, p. 311, 312).
Muitos críticos, fazendo um paralelo com as questões relacionadas ao aborto, pretendem impedir o desenvolvimento das pesquisas genéticas apelando para a proteção do óvulo fertilizado como se ele fosse um indivíduo. Os problemas com esses argumentos é determinar exatamente quando a vida humana começa, e se um embrião - ou em um estágio mais avançado, um feto - tem o mesmo status moral que possui um ser humano já crescido. Qual é a linha divisória entre vida e não vida? Se existe uma linha limitadora, como identificá-la? Determinar um limite preciso e relevante sobre o início da vida entre a fecundação e o nascimento é uma tarefa difícil, por isso, estabelecer leis razoáveis que deem a um embrião o mesmo status que possui uma pessoa não denota uma expressão racionalmente aceitável nem para bioconservadores nem para transhumanistas.
Mas o que entendemos quando utilizamos expressões como "vida humana" ou "ser humano"? Muitos filósofos e juristas concordam que o termo "humano" pode ser compreendido a partir de duas noções: (1) ser membro da espécie Homo sapiens e (2) ser uma pessoa.
No caso 1, pertencer ou não a uma espécie é algo que pode ser determinado por um exame minucioso da estrutura celular do indivíduo, e nesse caso podemos afirmar com absoluta certeza que um embrião desde os primórdios de sua existência pode ser identificado como um ser humano. Para o caso 2, será conveniente utilizar algumas características que os filósofos chamam de "indicadores de humanidade" ou ao que John Locke definiu como qualidades determinantes para definir um indivíduo como uma pessoa, ou seja, "um ser pensante e inteligente dotado de razão e reflexão, que pode ver-se como tal, a mesma coisa pensante, em tempos e lugares diferentes", essas características são: consciência de si, autocontrole, percepção de futuro e passado, capacidade de relacionar-se e preocupar-se com outros seres, comunicação e curiosidade.
A partir dessas duas definições, podemos afirmar que o embrião, o feto ou mesmo um bebê recém-nascido são membros da espécie Homo sapiens, mas não podemos afirmar da mesma forma que possam ser considerados como "pessoas", pois nenhum deles é autoconsciente, possui senso de futuro ou pode se relacionar completamente com outros membros da espécie.



ABORTO
Parece inevitável que, ao tocar no assunto do aprimoramento genético por meio da utilização de células-tronco embrionárias, toquemos também nos problemas relacionados ao aborto. O argumento central contra o aborto e consequentemente contra a utilização do embrião ou do feto para fins de pesquisas genéticas é o seguinte:
premissa 1 - É errado matar um ser humano inocente;
premissa 2 - Um feto é um ser humano inocente.
Logo, é errado matar um feto humano.
Caixa de texto:  
o aborto deve ser tratado como um direito da mulher interromper uma gravidez indesejada, pois cabe a ela decidir sobre seu próprio corpo 

Aceitar a premissa 1 é possível somente se aceitarmos o status sagrado da vida humana, considerando errado matar um ser pelo simples fato de ele ser membro de nossa espécie. Mas já vimos a dificuldade em sustentar essa concepção que herdamos das antigas doutrinas religiosas que muitas vezes abrem mão do pensamento racional. Se tomarmos "humanos" apenas como "membro da espécie Homo sapiens", não poderemos sustentar nossa defesa em conservar a vida do embrião ou do feto, pois ser da espécie Homo sapiens é uma característica que. carece de significação moral. Por sua vez, a definição de "humano" é subdividida em duas noções que demonstram a fragilidade da premissa 2, já que um embrião ou um feto fazem parte da espécie Homo sapiens mas não fazem parte do conjunto que classificamos como pessoas.
Reconhecer isso é fundamental para nossa preocupação com as questões relacionadas à pesquisa genética. O feto deve ser avaliado a partir de suas características reais sem a imputação de uma santidade, e isso o faz estar em pé de
igualdade com outros seres com características semelhantes, mas que não são membros de nossa espécie. Se não podemos dizer que um feto é uma pessoa, não podemos atribuir a um feto o mesmo valor ou direito atribuído a uma pessoa. Seria necessário refletir sobre o momento em que um feto possa ser capaz de sentir dor, pois, enquanto essa capacidade não existir, um aborto põe fim a uma existência que não tem valor intrínseco algum.
A avaliação do embrião também é semelhante, pois seria um contrassenso pensarmos no embrião como um indivíduo quando ele é ainda um aglomerado de célula. A constituição do indivíduo não se dá no momento da fecundação, mas somente ocorre no meio da sociedade e nas relações sociais estabelecidas com o outro, e é a partir das relações interpessoais com outras pessoas que a subjetividade pode ser constituída. Um embrião ou um feto não pode ser considerado um indivíduo ou uma pessoa, pois ainda não estabeleceu com membros de sua comunidade linguística uma simbiose de relacionamento. Somente ao tornar-se membro de uma comunidade, por entrar na rede simbólica de relações de reconhecimento recíproco entre pessoas que se comunicam, o recém-nascido é identificado como "um" ou como "um de nós", tornando-se moralmente inconfundível.
Proibir as pesquisas genéticas apelando à dignidade moral ou à proteção ao direito à vida que um embrião ou um feto devem ter é um equívoco categórico e pode levar a consequências trágicas. Seria mais ético deixar uma criança ou um adulto sofrer sem um tratamento que é desenvolvido a partir dessas técnicas do que utilizar um embrião que ainda não se tornou um humano para fins de pesquisas?
Já houve época em que a anestesia durante o parto, transplante de coração e FIV eram considerados repugnantes. Reações emocionais ao desenvolvimento científico e tecnológico não possuem um bom alicerce argumentativo. As técnicas de fertilização in vitro possibilitaram o nascimento de filhos a casais inférteis, e o avanço nessa área também possibilitou o desenvolvimento de técnicas de diagnósticos genéticos na fase de pré-implantação, possibilitando o nascimento de bebês mais saudáveis.
Se pudermos proporcionar aos nossos filhos e descendentes uma vida melhor e duradoura, evitando o sofrimento, o envelhecimento ou o padecimento por uma doença crônica, adiando a morte prematura, então devemos considerar eticamente aceitável fazer isso.


 SEGURANÇA PARA A EVOLUÇAO
Caixa de texto:  
A•c1onagem da ovelha Dolly foi o início de um desenvolvimento genético que hoje possibilita a esperança de cura para doenças como mal de Parkinson ou Alzheimer 

Entre todos os argumentos atuais contra a manipulação genética e a clonagem, o único que se pode apoiar racionalmente é a preocupação com a segurança do procedimento, ou seja, se a tecnologia disponível é suficiente para que o processo seja bem-sucedido. Restam poucas dúvidas de que em breve poderemos aprimorar nossa constituição biológica nos tornando mais saudáveis e mais inteligentes, além de desenvolvermos novas capacidades e ampliarmos cada vez mais o tempo de duração de nossa existência. Nesse tempo, viveremos em uma sociedade na qual conviveremos
diariamente com humanos aprimorados e clonados - eles serão gerentes de bancos, empresários, cientistas e pilotos.
Esse desenvolvimento, juntamente com outros, abrirá oportunidades sem precedentes para o crescimento e a prosperidade da humanidade. Um dia provavelmente vamos descobrir maneiras de deter e reverter o envelhecimento, estender nossa capacidade intelectual, física, emocional e espiritual para além dos níveis que são possíveis hoje. Será o fim da infância do homem e o início de uma nova era. Nossos descendentes, ou até nós mesmos, olharemos para nossa época da mesma maneira que olhamos para nossos ancestrais antes do desenvolvimento da linguagem.
Podemos participar ativamente na criação desse futuro que nos permitirá checar a níveis inimagináveis de florescimento humano e de bem-estar por meio da utilização de tecnologia avançada para combater doenças, o dano causados pelo envelhecimento e também para aumentar no as capacidades naturais. Não podemos rejeitar as oportunidades de crescimento simplesmente porque isso mudaria de alguma forma a maneira como concebemos atualmente a natureza humana.




CÉLULAS-TRONCO E SUAS CONSEQUÊNCIAS ÉTICAS
1 – Doação de tecido fetal: as células-tronco embrionárias são retiradas de fetos mortos;
Problemas éticos: utilizar células retiradas de tecidos de fetos mortos levanta a questão da cumplicidade com o aborto.

2 – Células derivadas de blastocisto: quanto as células-tronco são isoladas na fase de blastocisto do desenvolvimento embrionário criados por fertilização in vitro;
Problemas éticos: esse processo implica na destruição do embrião, e criar embriões apenas para pesquisa pode ser contestado deontologicamente, pois utiliza o embrião apenas como meio para atingir um fim.

3 – Transferência nuclear de células somáticas: quando a tecnologia de clonagem é utilizada para criar células embrionárias.
Problemas éticos: utilizar a técnica de clonagem para criar células embrionárias destinadas à investigação também gera preocupação de natureza ética e social, devido à possibilidade de um dia clonarmos completamente uma pessoa.

O PARADOXO DA IMORTALIDADE
Humanos criados em laboratórios com fenótipos cuidadosamente e detalhadamente escolhidos para cumprir funções necessárias na sociedade. Com as tecnologias que se desenvolvem na atualidade, a obra do escritor inglês Aldous Huxley Admirável mundo novo não nos parece mais uma realidade tão absurda ou distante.
Muitas benesses trazidas por este postulado são animadoras e nos livram de sofrimentos. Por outro lado, ações como a do futurólogo Ray Kurzweill, que declarou tomar 230 tipos de comprimidos com o objetivo de ser a própria cobaia em experimento que busca chegar próximo à imortalidade, poder ser um pouco assustadoras. A morte sempre foi um mistério para a humanidade e experimentos como esses nos fazem refletir sobre a possibilidade de suportar uma vida tão longa, ou, até mesmo de pensar se essa vida teria alguma qualidade. As células-tronco permitirão que nosso corpo aguente anos e anos, mas o que será de nossa mente? Se muitos ainda buscam o sentido para uma vida, não seria apenas o aumento de um sofrimento em um mundo com tantas mazelas, cada vez mais competitivo, com recursos escassos e economicamente inviável? Além disso, quem sabe como essa tecnologia será utilizada? Ela não poderá funcionar como mecanismo de dominação, como no caso de Huxley?

BIBLIOGRAFIA
BOSTROM, N. Human Reproductive  Cloning from the Perspective of the Future. Disponível em: http://www.nickbostrom.com/views/cloning.html

HABERMAS, J.  O Futuro da Natureza Humana. A caminho de uma eugenia liberal? São Paulo: SP: Martins Fontes, 2004.
HUXLEY, A. Brave New World. New York: Harper, 1946. (Admirável Mundo Novo. 2 Ed. São Paulo: Globo, 2001.)
KURZWEIL, R. A Era das Máquinas Espirituais. São Paulo: SP: Alephe, 2007.
SINGER, P. Ética Prática. São Paulo: SP: Martins Fontes, 2002.

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 FONTE: (BATISTA, Pablo de Araújo. O além-do-homem: jovens para sempre. In: Revista Filosofia: ciência & vida, Ano VII, nº 74, setembro 2012, p.61)


[*] Pablo de Araújo Batista é escritos e bacharel e filosofia.