Atenas, no tempo de Platão (século V a.C.), era uma cidade-Estado com significativas desigualdades sociais. Afinal, embora se tratasse de uma democracia direta, era também uma democracia escravista, na qual o direito à cidadania restringia-se a cerca de 10% da população, isto é, aos nascidos na cidade, do sexo masculino, adultos e livres. Estavam, portanto, excluídos os escravos, os estrangeiros, os menores de 18 anos e as mulheres.
Havia três classes fundamentais na organização da sociedade ateniense em termos das atribuições na polis: a dos magistrados, minoritária, formada pelos governantes, encarregados de elaborar as leis e fazê-las cumprir; a dos artífices ou classe econômica, mais numerosa, representada pelos trabalhadores em geral (artesãos, lavradores, comerciantes etc.) livres ou escravizados, responsáveis pelo provimento dos bens necessários à sobrevivência dos cidadãos; e a dos guerreiros, encarregados da defesa da cidade.
Para Platão, essa desigualdade de classes não é necessariamente um problema, desde que cada cidadão seja encaminhado para a função que está em conformidade com a sua natureza[1]. Isso porque, para ele, cada um nasce mais preparado para exercer um determinado tipo de atividade. A cidade justa é aquela que se organiza pela justa medida, isto é, aquela em que cada um ocupa o lugar designado pela sua natureza. Nas palavras de Platão, a cidade é "justa pelo fato de que cada uma das três ordens (classes) que a constituem cumpre sua função"[2], ou seja: "É justo que aquele que, por natureza, é sapateiro fabrique sapatos e nada mais faça, que o construtor construa e, quanto aos outros, também seja assim."[3] Se isso for assegurado, reinará a harmonia e a prosperidade.
Para melhor explicar e justificar essa posição, Platão se vale de uma fábula, ou melhor, de uma "mentira, única e genuína"[4], daquelas que se fazem "necessárias"[5] uma vez que servem à conservação da cidade. Trata-se do mito dos nascidos da terra, segundo o qual os gregos, tanto eles quanto suas armas, teriam sido modelados e criados no interior da terra e esta, como sua mãe, os teria dado à luz. Por isso, eles devem cuidar do lugar onde vivem como um filho cuida de sua mãe, defendê-la dos inimigos e tratarem-se mutuamente como irmãos[6]. E a narrativa prossegue:
Todos vós que estais na cidade sois irmãos, [ ... ] mas ao plasmar-vos, o deus, no momento da geração, em todos os que eram capazes de comandar misturou ouro, e por isso são valiosos, e em todos os que eram auxiliares daqueles misturou prata, mas ferro e bronze nos agricultores e outros artesãos. Já que todos vós sois da mesma estirpe, no mais das vezes geraríeis filhos muito semelhantes a vós mesmos, mas, às vezes, do ouro seria gerado um filho de prata e, da prata, um de ouro, e assim com todas as combinações de um metal com outro. Aos chefes, como exigência primeira e maior, ordenou o deus que de nada mais fossem tão bons guardiões quanto de sua prole, nem nada guardassem com tanto rigor, procurando saber que mistura havia na alma deles e que, se um filho tivesse dentro de si um pouco de bronze ou de ferro, de forma alguma se compadecesse dele, mas que o relegasse, atribuindo-lhe o valor adequado à natureza, ao grupo dos artífices e agricultores. Mas, em compensação, se um deles tivesse em si um pouco de ouro ou prata, reconhecendo-lhe o valor, fizesse que uns ascendessem à função de guardião e outros à de auxiliares, porque havia um oráculo que previa que a cidade pereceria quando um guardião de ferro ou bronze estivesse em função [PLATÃO, 2006, p. 129 [415a-c].
Embora se trate de uma "mentira", como reconhece Platão, esta fábula seria útil para que os magistrados "cuidassem mais da cidade e do relacionamento entre uns e outros,"[7] mostrando-lhes que possuem alma de ouro e que, portanto, não precisam almejar possuir ouro em metal (riqueza material), pois a maior riqueza está dentro deles e esta não perece e não lhes pode ser tomada. Assim a cidade seria governada por pessoas que não teriam motivo para praticar a corrupção, favorecendo a justiça.
[1] PLATÁO. A República. São Paulo, Martins Fontes, 2006. p.137[4I2c]; 140[423dJ; 143 [425cJ; 154 [433a-e]; 156-157 [434c]; 167 [441d].
[2]Idem, p. 167 [441d].
[3] Idem, p. 170 [443c].
[4] Idem, p. 128 [414c].
[5] lbidem.
[6] Idem, p. 128 [414d].
[7] Idem, p. 129 [415d].
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FONTE (SÃO PAULO, Caderno do professor: filosofia. EM, 3ªs., v.2, 2009, pp.25-26).
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