Dificuldade para se formular um método na Filosofia
Vamos aceitar, com Karl
Marx, que o homem só põe problemas que ele é capaz de resolver de um modo ou de
outro, seja ‘dissolvendo’ os problemas - mostrando, por exemplo, que são falsos
problemas ou mostrando que nós não precisamos resolver esses problemas para
chegar aos objetivos que nós queremos – seja solucionando-os diretamente. Bem,
se todos os problemas são solucionáveis, de uma maneira ou de outra, então deve
ser possível discernir alguns procedimentos recorrentes adotados na resolução
deles. O conjunto desses procedimentos constituiria o núcleo do método de resolução
daqueles problemas.
Ocorre, no entanto, que
no caso em que os problemas são filosóficos, surgem algumas dificuldades, uma
das quais é a seguinte. Se nós já tivéssemos um bom número de problemas filosóficos
resolvidos, na opinião da maioria dos estudiosos, nós poderíamos, com base na
resolução feita, tentar descrever quais foram os procedimentos de método que
levaram à solução deles. Mas, infelizmente, ao que parece, não temos nenhum, ou
quase nenhum, problema filosófico substantivo resolvido na opinião consensual da
comunidade dos filósofos. Isso dificulta bastante as coisas, em contraste, por
exemplo, com o que ocorre no caso das epistemes
mais sólidas, as científicas. Isso dificulta
começar a dar uma resposta mais objetiva à questão de qual seja o método em
Filosofia.
Mas talvez existam
algumas verdades universalmente aceitas em Filosofia (quer dizer, aceitas por
quase todos), em particular em metafilosofia
– que é a reflexão sobre a própria Filosofia.
Enumeremos algumas dessas verdades.
A primeira é a tese de
que a origem da filosofia está na perplexidade, no espanto. Uma segunda é: as
interrogações/questões/problemas da Filosofia são pelo menos tão importantes
quanto, e talvez até mais importantes do que, as respostas que foram e têm sido
dadas a elas. Uma terceira é que a superação do que se pode chamar ignorância ignara,
isto é, a ignorância que pensa que sabe e não sabe e que se opõe à ignorância douta (em
latim, docta ignorantia e que consiste no reconhecimento da ignorância de muitas
coisas), sendo esta superação condição indispensável para ascender à ignorância
douta e para se percorrer o caminho de encontrar soluções para os problemas filosóficos.
Uma quarta tese é que a Filosofia, enquanto estudo de determinadas
interrogações e tentativa de respondê-las, precisa apoiar-se na sua história escrita,
sua historiografia, alimentar-se desta de um modo vital. A historiografia é um
discurso que expõe e interpreta as obras filosóficas, situando-as em um
desenvolvimento histórico que revele as continuidades, as rupturas, as
influências, o nascimento e renascimento de escolas, etc. Uma quinta tese e de que
não se pode ensinar a filosofia, se esta é entendida como um corpo de doutrinas subscritas pela
comunidade dos filósofos, já que esse corpo simplesmente não existe; só se pode
ensinar a filosofar. E a última tese é a de que em Filosofia, como em qualquer
outra forma de episteme, deve-se cultivar o enfoque racional e desinteressado
na produção e formulação das hipóteses
e dos princípios a serem demonstrados ou
defendidos.
Assinalei acima uma
dificuldade para se formular o método em filosofia. Uma outra dificuldade é a
seguinte. Parece haver uma inseparabilidade entre a prática metodológica do
filósofo e sua doutrina substantiva. Se dois filósofos diferem muito um do
outro no que diz respeito à doutrina, provavelmente vai haver uma divergência
tão grande quanto ao método que fica inviável pensar uma metodologia que ambos
aceitem. Para dar um exemplo. O filósofo (e também psicólogo) William James (1842-1910), americano,
fundador do pragmatismo, afirma que a história da filosofia é, numa grande
medida, a história de um conflito de temperamentos humanos. Ora, o temperamento
não é reconhecido como uma razão, a qual tem de ser relativamente impessoal,
para poder sustentar adequadamente as conclusões. O temperamento do filósofo é
algo muito pessoal, e segundo James atua muito mais fortemente do que as
premissas apresentadas como objetivas e impessoais. James tem uma visão
pragmatista, e não racionalista nem empirista nem cientificista, da Filosofia.
Vejam que a confiança na utilização de uma metodologia depende de se excluírem
certas visões da Filosofia, como esta de James, que a tornam demasiado pessoal e
subjetiva.
Quem tem essa visão
pragmatista da Filosofia não pode estar de acordo com alguém que pensa, por exemplo,
que a filosofia deve ser fruto de um intelecto comprometido com procedimentos que
não dependam da subjetividade de cada um. Uma concepção deste último tipo é defendida, por
exemplo, por Bertrand Russell (1872-1970), matemático, filósofo, educador e ativista de causas
sociais. Dele é o seguinte trecho – aliás, semelhante a um outro, de Nietzsche,
que citarei em seguida – sobre esse assunto: “Os filósofos, desde Platão a
William James permitiram que suas opiniões sobre a constituição do Universo
fossem influenciadas pelo desejo de edificação. Sabendo, ou julgando saber,
quais crenças tornariam os homens mais virtuosos, eles inventaram argumentos,
alguns dos quais bem falaciosos, para provar que essas crenças são
verdadeiras.”Subjacente a esse pensamento está a crença de que é possível
produzir uma filosofia objetiva.
Eis agora o trecho de
Friedrich Nietzsche (1844-1900):“Para explicar como um filósofo chegou às suas
mais remotas afirmações metafísicas, é sempre bom e sábio se perguntar que
moralidade ou edificação é visada por essa metafísica. Em conformidade com
isso, não acredito que um impulso ao conhecimento tenha sido o pai da
filosofia, mas acredito, ao contrário, que um outro impulso apenas empregou o
conhecimento – e um falso conhecimento – como instrumento”.
O outro impulso, de que
o texto fala, é a vaidade; Nietzsche chama os grandes filósofos do passado de
“monstros de vaidade”. No texto de Russell com certeza – o de Nietzsche também,
talvez – nós temos um pensamento que é aproveitável para quem quer defender uma
posição da filosofia como uma episteme respeitável no mesmo nível, pelo menos,
que muitas outras, e criticar aquela posição do subjetivismo temperamentalista
de William James. Temos aí, portanto, duas grandes posições contrárias, e é claro
que vai ser impossível você reunir esses dois grupos de filósofos e tentar
fazer com que eles cheguem a algum acordo a respeito do método em Filosofia,
dada essa inseparabilidade, que parece existir, entre a teoria e a prática do
método, de um lado, e a doutrina substantiva do outro. Essa então é mais uma
dificuldade para se responder a questão de qual é o método em Filosofia.
Mas esqueçamos um pouco
essas dificuldades e tentemos dizer algo de positivo sobre o método em
Filosofia. Vou enumerar o que, por falta de melhor nome, chamarei de componentes subjetivos e componentes objetivos do método em Filosofia.
1 - Componentes
subjetivos do método filosófico
Nos componentes
subjetivos vou distinguir duas coisas: um elemento
ético, e um outro que vou chamar de elemento temperamental. No
que diz respeito ao primeiro, estou pensando, por exemplo, numa reflexão feita
para Claude Bernard (1818-1878), fisiologista, médico e pensador da ciência.
Ele afirma que o cientista, antes de entrar em seu laboratório, tem de tomar uma
atitude importante, que é a de desprender-se dos preconceitos e das idéias
recebidas. Ora, esse é um esforço que podemos, com propriedade, caracterizar
como ético.
O filósofo deverá estar
comprometido com as normas ou regras do ‘jogo filosófico’. Quais são essas
normas ou regras? Essas normas mandam que o filósofo, ou o aprendiz de
filósofo, ponha o seu amor à verdade e seu empenho em chegar ao conhecimento,
acima, digamos assim, de quaisquer outros amores seus, em si mesmos legítimos,
que possam conflitar com esse primeiro amor. Então, na medida em que você se
apresenta, aos outros e a si mesmo, como filósofo, como genuinamente filósofo,
você implicitamente estará fazendo, digamos, um ‘juramento profissional’ que,
embora não seja público ou registrado em ata, nem conste formalmente de
instrumentos jurídicos, é muito significativo e poderia ser enunciado, por
exemplo, nos seguintes termos: “Prometo, na medida de minha capacidade, pôr o
interesse pela descoberta da verdade e pela sua justificação acima de qualquer
outro interesse meu que possa conflitar com ele”. E promessa, mesmo informal, é
dívida; isto é, o sujeito tem uma obrigação, para com a comunidade de seus
interlocutores, de agir em conformidade com essa promessa. Esse é, portanto, o
componente ético que tem de estar presente no caráter e na conduta intelectual
do pesquisador em geral, talvez mais particularmente em ciências humanas, e
mais ainda nessa forma de episteme que se chama Filosofia. Esse é o componente ético e é nele que
reside a característica da episteme de ser desinteressada, referida no início do artigo.
Vamos agora ao
componente de temperamento. Há, nesse amor à verdade – nesse amor que ama mais a verdade
do que a própria doutrina que se tem num certo momento da vida – um elemento
que não é ético, e que estou chamando de temperamental. Ele consiste em se identificar emocionalmente com o que há de
mais excitante nesse jogo – que é o jogo da verdade, o jogo de buscar a verdade
– jogo no qual você ‘marca gol’ quando encontra a verdade ou algo próximo dela,
e marca gol contra quando defende o erro porque deseja que ele fosse a verdade.
Suponhamos que, num jogo
amador e amistoso de futebol, você marque um gol agindo em desacordo com as regras do jogo. Pois bem,
assim como nessa situação não tem graça ganhar do adversário roubando, por
exemplo, marcando gol com a mão sem que o juiz veja, também não tem graça – é
esse o elemento puramente temperamental, psicológico, isto é, extra-moral – não
tem graça defender uma proposição teórica, uma tese sabendo que você está
escondendo dos outros, e possivelmente de você mesmo, evidências contrárias a
essa proposição, ou que você está como que ‘fabricando evidências’ favoráveis a
ela. Com esse comportamento seu, o jogo perde justamente o que ele tem de mais
essencial, de mais excitante, que é a única grande razão de ele ser disputado.
De onde vêm a
conveniência e a necessidade de se enfatizarem esses elementos éticos e
temperamentais? Vêm do fato de que há forças poderosas, dentro de nós mesmos,
que agem insidiosamente numa direção contrária a eles. Essas forças foram
objeto de atenção de uma tradição de pensamento que se constituiu na Europa
continental na época moderna. Ela se chama a vertente dos moralistas franceses, e
começa com Michel de Montaigne, no século XVI, passa pelo século XVII, com La
Rochefoucauld e Blaise Pascal (que é, por sinal, uns dos gigantes do pensamento ocidental),
percorre o século XVIII com La Bruyère, Chamford, Vauvegnargues e outros, e tem
continuadores no século XIX e mesmo no século XX. Essa tradição pensou os
fatores internos que
atuam como obstáculos tanto ao cultivo do temperamento sintonizado com o que há
excitante nas regras do jogo da verdade, quanto à adoção de condutas em
conformidade com a norma ética de não fabricar evidências, não ocultar
elementos desfavoráveis à opinião própria, etc. Essas forças são de fato
poderosas, daí a necessidade de se enfatizar tanto o lado ético quanto o lado
temperamental dessa coisa que se chama o amor da verdade, o apreço pelo saber,
a filosofia (Aproximadamente, em grego “sofia” e “filo” se traduzem
respectivamente por “sabedoria” e “amante de”.
Com a ajuda dessa
tradição, reflitamos então sobre esses fatores internos. Entre os traços de temperamento
que prejudicam o exercício do amor ao saber, figuram o amor-próprio(num certo
sentido desse termo) e a vaidade. Ouçamos Pascal a respeito de um e de outro: “A natureza do
amor-próprio, desse eu humano, é de amar apenas a si e não considerar a não ser
a si. Mas ele não vai conseguir impedir que esse objeto que ele ama seja cheio
de defeitos e de miséria. Ele quer ser grande, ele se vê pequeno; ele quer ser
feliz, ele se vê miserável; ele quer ser perfeito, ele se vê cheio de
imperfeições; ele quer ser objeto de amor e de estima dos homens, e ele vê que seus
defeitos não merecem senão a aversão e o desprezo deles. Esse embaraço em que
ele se encontra produz nele a paixão a mais injusta e criminosa que se possa
imaginar, porque ele concebe um ódio mortal contra essa verdade que o repreende
e que o convence de seus defeitos.
Ele desejaria
aniquilá-la, e não podendo destruí-la nela própria, ele a destrói, tanto quanto
ele pode, no seu conhecimento dela... Isto é, ele toma todo o cuidado em cobrir
os seus defeitos aos olhos dos outros, e aos seus próprios olhos” (grifo meu).
Essa descrição que o autor faz do amor-próprio é a descrição de algo que está
arraigado na natureza humana e que não poupa ninguém, conforme se infere desta
outra passagem dele: “Há diferentes graus dessa aversão pela verdade, mas pode-se
dizer que ela está em todos os homens em algum grau, porque ela é inseparável
do amor-próprio”. Pascal também inclui a todos nós, inclusive a ele próprio,
entre as vítimas intelectuais desse outro inimigo interno insidioso que é a vaidade:
“A vaidade está tão arraigada no coração do homem, que um soldado, um criado,
um cozinheiro, um carregador, se vangloria e quer ter seus admiradores, e os
filósofos também querem ter. E aqueles que escrevem contra também querem ter a
glória de terem escrito bem, e aqueles que os lêem querem ter a glória de tê-los
lido. E eu que escrevo isso talvez tenha essa vontade também”. E, podemos e
devemos acrescentar, nós outros que escutamos essas palavras de Pascal – nós
outros, quer dizer, eu que escrevo isso e vocês que me lêem – também talvez
tenhamos essa vontade.
Estas reflexões se
alinham com outras, que mostram quanto poderosas são as forças subjetivas e
psicossociais que bloqueiam o cultivo do temperamento amante das regras do jogo
e do senso de obrigação e de obediência a elas.
Mais tarde, e mais ou
menos no mesmo espírito, escreveu Arthur Schopenhauer: “Essa filosofia
universitária, carregada de uma centena de interesses e mil comprometimentos
diversos, caminha usando rodeios e avançando por caminhos tortuosos sem jamais
perder de vista o temor do Senhor, a vontade do ministério, as exigências do
editor, o favor dos estudantes e a boa amizade dos colegas”. Schopenhauer é do
século XIX, o que nos faz ver que essa é uma temática recorrente; e isso só acentua
a importância, para o filósofo e o cientista tanto quanto para os aprendizes de
filósofo e de cientista, de se protegerem contra esses obstáculos internos poderosos.
Daí a necessidade de se insistir sobre a importância de se educar o espírito,
de educar a sensibilidade, para que cultivemos tanto o gosto pelas regras do
jogo da verdade, quanto a disposição de se obrigar a agir em conformidade com o
preceito que manda colocar o amor da verdade acima de outras possíveis
inclinações conflitantes com ele, o que não raro é muito difícil, e às vezes talvez
mesmo impossível, de se fazer. Um parênteses. Temos aqui três filósofos do passado,
um do Século XVII, o francês Pascal, e os outros dois, os alemães Schopenhauer
e Nietzsche, do século XIX. Ocorre que quanto mais o tempo passa – o tempo das
últimas quatro ou cinco décadas – tanto mais fica patente a atualidade deles,
especialmente talvez a de Nietzsche e a de Pascal. Mas no caso deste pensador
francês a atualidade é mais surpreendente e admirável do que no dos dois
alemães: estes, e Nietzsche mais do que Schopenhauer, nos são bem mais próximos,
não só no tempo, mas culturalmente. Já Pascal era contemporâneo de Descartes, e
viveu a maior parte de sua vida na primeira metade do século XVII, um século já
remoto e culturalmente muito contrastante com o nosso, o que torna ainda mais
admirável a grande atualidade que ele tem, tanto como filósofo moral, quanto
como filósofo da mente – com suas reflexões sobre a imaginação e os traços de
temperamento e de caráter – e também como pensador do conhecimento humano.
Duas palavras sobre a
relação entre o componente ético e o componente temperamental.
Primeiro, não há uma
distinção completa entre os dois: um ou outro elemento de um deles pode ser
também elemento do outro. Por exemplo, a coragem
intelectual está incluída na área
fronteiriça entre o componente temperamental e o componente ético, com um pé
num deles e o outro pé no outro. Com efeito, a coragem parece exigir tanto um
temperamento condizente, quanto um apropriado senso de dever. Segundo, a
prática da dimensão ética é indispensável; ou seja, o exercício da dimensão
temperamental não basta por si só. Não basta a vantagem da virtude
temperamental, mesmo quando ela existe num grau elevado. E o exercício do
primeiro, do ético, é grandemente facilitado pelo cultivo do temperamento que
seja mais ou menos naturalmente amante das regras do jogo, amante do jogo limpo
Ou seja, o traço temperamental tem de figurar no equipamento com o qual o investigador
empreende a busca de respostas aceitáveis para as questões filosóficas, mas ele
não é suficiente.
O traço temperamental e
o componente ético são mais importantes – atenção para isso – onde se tem menos
controle científico, tanto na formulação quanto na defesa de hipóteses. Sem a
quantificação e os conceitos da matemática e da lógica, que inclusive algumas disciplinas
humanas, como a Economia, utilizam sem os procedimentos experimentais, que certas
psicologias usam, e sem o sofisticado aparato tecnológico posto a serviço das
ciências biológicas e biomédicas, da astronomia, sem isso tudo o fato é que
nós, filósofos, dependemos daquelas duas condições num grau bem maior do que
nas modalidades da episteme em que há recursos daqueles tipos. Então esse bipê
é um suporte fundamental para a sustentação, ainda que relativa, da busca do
saber em Filosofia e na maior parte das ciências humanas. Dentro das
humanidades, é a Filosofia que precisa deles mais ‘desesperadamente’. Por
exemplo, a ciência política trabalha com dados quantitativos (por exemplo, com
resultados de eleições), embora esses dados sejam sujeitos, eles próprios, a
serem interpretados diversamente por diferentes estudiosos. Ou seja, o
praticante da episteme filosófica precisa ser mais virtuoso, no que diz respeito
àquelas duas qualidades, do que os praticantes das demais modalidades da
episteme.
Estou falando, portanto,
da posse de um equipamento, que inclui elementos intelectuais, emocionais e
éticos, que é parte de um discurso do método para bem conduzir o intelecto e
procurar, se não a verdade na Filosofia, pelo menos evitar o erro nela.
2 - Componentes objetivos
do método filosófico
Encerrada a reflexão
sobre as condições subjetivas, entro na consideração das condições que, por
falta de termo melhor, chamei de objetivas. Voltemos à tese segundo a qual os problemas da Filosofia são
mais importantes do que as respostas a eles. É possível defender essa tese com pelo
menos duas ou três boas razões, mas isso não será feito aqui. Apenas registro a
respeito o testemunho de dois filósofos, um dos quais é Bertrand Russell, já
mencionado antes. Escreve ele: “Em filosofia o que é importante não são tanto
as respostas que são dadas, mas antes as questões que são colocadas. A esse
respeito a Escola de Mileto merece a fama que tem”. As respostas que essa
Escola deu sobre a constituição do mundo físico hoje soam infantis para nós,
mas permanecem as perguntas que eles foram capazes de fazer, bem como o método
que eles utilizaram para respondê-las. O outro é o alemão Karl Jaspers (1883-1969), que foi
também um psiquiatra influente. Ele escreveu: “Filosofia significa ir a
caminho, seguir, continuar, suas questões são mais essenciais do que as
respostas, e toda resposta se converte numa nova questão”.
Reflitamos novamente
sobre as questões filosóficas.
Observe-se que elas são
interessantes intrinsecamente, isto é, nelas
mesmas. As pessoas que cuidam de respondê-las,
querem – simplesmente querem – encontrar respostas para elas. Esse parece ser
um desejo mais ou menos natural.
Mas, conforme foi
desenvolvido mais atrás, um problema filosófico não é definido como tal (isto
é, como problema)
independentemente de um sujeito particular. Um filósofo espanhol contemporâneo,
Julián Marías, nascido em 1916, escreveu sobre isso e afirmou que não basta o
assim chamado problema vir numa forma interrogativa e versar sobre um assunto
dito filosófico. Por exemplo, “O que é a liberdade?”, “Como se conciliam liberdade
individual e controle social?” É preciso, além disso, que aquilo que se
pergunta tenha com a pergunta uma relação visceral tal que essa interrogação
lingüística se torne um problema vital para ele, um problema mesmo, no sentido
de incomodá-lo, de ser um obstáculo que ele tem de transpor para continuar no
caminho. Quer dizer, o assim chamado problema tem de ter uma real problematicidade.
Esse é um elemento que faz o problema interessante, que torna a questão filosófica
interessante. As questões da Filosofia estão entre as questões teóricas que
mais fortemente despertaram, e continuam despertando, o interesse dos seres
humanos; são questões que estes colocaram em diversos momentos do passado, e
insistem em continuar colocando hoje.
Boa parte do que
chamamos Filosofia consiste,
portanto, em levantamento de certas questões e tentativa de respondê-las; a
Filosofia se apresenta como levantadora de questões, como clarificadora de
questões, como modificadora de questões, como crítica de questões, e como
investigadora do relacionamento dessas questões umas com as outras e com o
momento sociocultural em que elas se formulam. Vamos pensar, então, na
Filosofia como um certo conjunto de questões, e nossa pergunta é: qual seria o
método para investigar essas questões? Diz um interessante filósofo inglês,
Isaías Berlin (nascido em 1909 e morto em 1997), pensador político e
historiador das idéias: “Uma marca das questões filosóficas é esta, que você
não sabe bem onde olhar para buscar uma resposta”; ou seja, você não sabe como
proceder exatamente para chegar a uma resposta, entre outras coisas por não se
tratar de uma questão científica, experimental ou não. E continua ele: “Quando
não existe um método estabelecido para se fazer algo, você faz o que pode. Você
simplesmente tenta resolver paciente e esforçadamente. A Filosofia assim concebida,
isto é, como o estudo de certos problemas, é pensada, portanto, essencialmente
como uma atividade, e não como um corpo de proposições afirmadas como verdadeiras,
como, por exemplo, a Aritmética e a Geografia. Encontramos a Filosofia assim concebida
em autores tão diferentes como Ludwig Wittgenstein (1889-1951) e Julián Marías,
sendo o primeiro um pensador austríaco naturalizado britânico, para quem a
Filosofia é uma atividade de ‘terapêutica intelectual’ que visa livrar-nos de
males doutrinais. Para Marías, que nesse ponto segue seu mestre Ortega y
Gasset, um outro espanhol, a Filosofia é um “quehacer” (um afazer), ou seja, um
fazer mais do que qualquer outra coisa.
O método, então, qual
seria? Em conformidade com o que foi dito antes, ele teria de ser um método
para a atividade de estudar e trabalhar essas questões. Seria um método,
primeiro, para melhor detectar questões que vale a pena levantar, no sentido de
que vai ser fecundo levantá-las em um dado momento em que elas deverão
encontrar repercussão. Segundo, para fazer avançar nossa compreensão desses
temas e questões, bem como da história de seu surgimento, ressurgimento e
transformações sofridas ao longo do tempo, de seu relacionamento com a história
passada, e da interligação desses temas com elementos não-filosóficos do
momento histórico. Terceiro, um método que nos guie em como melhor se abrir a
influências retificadoras de nossa visão atual da problemática, e de sua
atualidade ou não.
Nesse quadro, há uma
disciplina que passa a ocupar um lugar especial na teoria do método filosófico,
e ela é a Filosofia da Linguagem. Por que isso? Pelo seguinte. De um modo
geral, é prudente, metodologicamente, apoiar-se no mais próximo para se
conhecer o mais distante, no mais concreto para se conhecer o mais abstrato, no
mais familiar e observável para se conhecer o menos familiar e não-observável.
Sendo assim, uma idéia que parece boa é observar a linguagem, estudar a
linguagem, que é afinal de contas o instrumento com o qual nós filosofamos; nosso
instrumento não é o telescópio, nem o microscópio, nem qualquer outro produto
de avanços tecnológicos. A linguagem é feita de comportamentos verbais, de
ações lingüísticas, e a idéia é analisar esses comportamentos e ações, com
vistas a aprender a direcioná-los para melhor pensar as questões filosóficas.
Nesse terreno, uma das
coisas que foi feita é refletir sobre o que se chama erro categorial, e
avanços foram feitos aí. Um erro categorial ocorre quando você confunde
categorias diferentes, ou de níveis diferentes: você põe numa categoria um
objeto que não pertence a essa categoria, e nós somos levados a isso pela
linguagem, pelo que podemos chamar de armadilhas da linguagem, que nos induzem
ao erro, que nos ludibriam, nos “enfeitiçam”. Um exemplo. A linguagem inclui
substantivos como ‘mente’, ‘consciência’. Ora, muitos substantivos denotam objetos,
entidades. Então passamos a subentender que, do mesmo modo que o objeto
denotado por ‘mesa’ existe, também deve existir um objeto, uma coisa, denotado por
‘mente’, por ‘consciência’. Ocorre, no entanto, que é duvidoso que esses
objetos existam; o que parece existir são processos mentais e não “a mente”,
processos conscientes – também processos pré-conscientes, processos
inconscientes – e não “a consciência”; mas a tendência é, deixando-se
enfeitiçar pelos substantivos, supor que existam, como entidades, a mente, a
consciência, e outras coisas. Então, a partir da existência de substantivos –
que são reais, sim, mas são uma realidade lingüística – ‘substantivamos’ a
coisa, no nível da realidade, isto é, inventamos uma espécie de substância a que a palavra
se refere. Ou seja, de tanto falar “a mente”, “a consciência”, acabamos por
acreditar que existe uma coisa, um objeto, uma entidade, referida pela palavra.
Esse tipo de contribuição
foi trazida por filósofos como Gottlob Frege, também lógico e matemático (1848-1925).
Ele via a tarefa da Filosofia como a de “romper com o domínio da palavra sobre
o espírito”, tema ecoado na obra de Wittgenstein12, para quem o núcleo do exercício da Filosofia é libertar-se do
feitiço, do enfeitiçamento, da linguagem. Então, parece que a Filosofia da
Linguagem é uma disciplina metodológica primeira. Freqüentemente o exercício da
filosofia da linguagem é clarificar conceitos, mas não se trata de fazer
clarificações lingüísticas sem interesse substantivo para a episteme filosófica. Não
se trata, tampouco, meramente de clarificar o discurso do senso comum. Trata-se
de tomar as idéias e o vocabulário do senso comum apenas como um ponto de
partida para uma compreensão analítica elaborada. Vamos dar exemplos desse tipo
de pergunta que é filosoficamente relevante. “O que é um direito humano?”
“Somos naturalmente dotados de direitos, ou os direitos são uma atribuição
convencional?” “A liberdade, no sentido da Filosofia da Ação, é um traço que se
descreve como se descreve, por exemplo, o comportamento agressivo? Ou não?” “A liberdade,
no sentido da Filosofia Política, tem a natureza de um direito que o sujeito
tem? Ou é um traço factual?” É no exame dessas questões, e das implicações
delas, que a Filosofia da Linguagem ajuda, ou pode ajudar. Então a linguagem é
de fato – e isso é um ponto pacífico – orientadora
e desorientadora do intelecto. É um
instrumento do acerto quando se acerta, e do erro quando se erra. Ora, o
conhecimento desse instrumento, dos seus meandros, de suas artimanhas, de suas
funções, permitiria, podemos acreditar, promover o acerto e prevenir o erro.
O tratamento do que
chamei de condições subjetivas e objetivas constitui uma reflexão sobre o
método, sobretudo em ciências humanas e, em especial, em Filosofia. Sobre o
método fiz uma reflexão que tem duas partes, basicamente. Uma sobre as
condições subjetivas, e aí temos uma grande e fantástica contribuição da
filosofia européia continental, especialmente da vertente dos moralistas
franceses e de seus continuadores. No que diz respeito aos componentes objetivos,
aproveitei-me de uma tradição filosófica de um tipo diferente da primeira, que
é a Filosofia Analítica. Essas duas tradições confluem para o mesmo ponto. E
não surpreende que assim seja, porque no fundo, e em última análise, ambas as
tradições pensaram, e estão pensando, as questões da Filosofia, tanto as
questões de método quanto as questões substantivas.
Observação necessária
Tentar
dizer o
que a Filosofia é, e desse modo esperar transmitir a quem ouve ou lê o espírito
dela, o ‘coração e a mente dela’, é uma empreitada nela mesma com uma séria
limitação, mesmo que alguém consiga dizê-lo de um modo excepcionalmente bom, ou
o melhor possível. É que a Filosofia propriamente dita – isto é, aquela que é
praticada por aqueles que chamamos filósofos, e que não incluí nem estudos de
comentador nem histórico-filosóficos propriamente ditos – é uma atividade, uma arte,
portanto algo que envolve o cultivo de determinados interesses e habilidades.
E, como toda arte, ela não é suscetível de ser explicada apenas por meio de
discurso. É necessário, para se ter dela uma explicação menos abstrata, mais concreta
e aprofundada, que se a pratique; é preciso que o dizer de quem explica se combine intimamente
com o fazer filosófico, com a atividade
filosofante – ainda que em nível do
aprendiz de filósofo – daquele para quem a explicação está sendo dirigida.
Suponhamos que alguém fosse explicar/descrever, para um grupo de dançarinos, todos
os passos e a coreografia de uma dança não-familiar. Uma maneira seria fazê-lo
apenas discursivamente, digamos com grande precisão vocabular e riqueza de
detalhes. Uma outra maneira seria combinar a primeira com exibição de fotografias,
com a exibição de um vídeo, ou, melhor ainda, com a encenação ao vivo pelos
praticantes dela. Com isso, os ouvintes/espectadores teriam da nova dança uma
compreensão boa, mas limitada. A compreensão mais completa e aguda da platéia
viria com a combinação do anterior com a atividade de seus componentes em
tentar praticar a própria dança objeto da explicação. Embora filosofia e dança sejam
coisas muitíssimo diferentes, há um importante e decisivo elemento comum entre
elas, que é serem formas de arte (ao menos no sentido amplo, mas alguns diriam que não só nele).
Na segunda trata-se de arte de movimentar e controlar o corpo, de criar e
executar movimentos associados com o ritmo e a melodia da música. Na primeira
se trata-se da arte de levantar uma questão nestes ou naqueles termos (ou de
abster-se de levantá-la, quando se julgar epistemicamente inapropriado fazê-lo),
da arte de buscar respostas e avaliá-las, da arte de argumentar (ou de
abster-se de fazê-lo quando se pressente que já se chegou ao ‘inargumentável’, ao
‘axiomático’). As teorias num caso e as instruções no outro estão ambas nos
livros, no discurso, mas somente incluindo o exercício da arte é possível
começar a ter uma compreensão mais realista e aprofundada do objeto que está
sendo explicado.
As
considerações deste parágrafo final têm conseqüências (construtivas) para os estudiosos
no campo do comentário filosófico e no da história das idéias filosóficas.
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FONTES: (http://acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/40351/3/2ed_filo_m1d1.pdf