domingo, 23 de outubro de 2011

METODO NA FILOSOFIA


Dificuldade para se formular um método na Filosofia
Vamos aceitar, com Karl Marx, que o homem só põe problemas que ele é capaz de resolver de um modo ou de outro, seja ‘dissolvendo’ os problemas - mostrando, por exemplo, que são falsos problemas ou mostrando que nós não precisamos resolver esses problemas para chegar aos objetivos que nós queremos – seja solucionando-os diretamente. Bem, se todos os problemas são solucionáveis, de uma maneira ou de outra, então deve ser possível discernir alguns procedimentos recorrentes adotados na resolução deles. O conjunto desses procedimentos constituiria o núcleo do método de resolução daqueles problemas.
Ocorre, no entanto, que no caso em que os problemas são filosóficos, surgem algumas dificuldades, uma das quais é a seguinte. Se nós já tivéssemos um bom número de problemas filosóficos resolvidos, na opinião da maioria dos estudiosos, nós poderíamos, com base na resolução feita, tentar descrever quais foram os procedimentos de método que levaram à solução deles. Mas, infelizmente, ao que parece, não temos nenhum, ou quase nenhum, problema filosófico substantivo resolvido na opinião consensual da comunidade dos filósofos. Isso dificulta bastante as coisas, em contraste, por exemplo, com o que ocorre no caso das epistemes mais sólidas, as científicas. Isso dificulta começar a dar uma resposta mais objetiva à questão de qual seja o método em Filosofia.
Mas talvez existam algumas verdades universalmente aceitas em Filosofia (quer dizer, aceitas por quase todos), em particular em metafilosofia – que é a reflexão sobre a própria Filosofia. Enumeremos algumas dessas verdades.
A primeira é a tese de que a origem da filosofia está na perplexidade, no espanto. Uma segunda é: as interrogações/questões/problemas da Filosofia são pelo menos tão importantes quanto, e talvez até mais importantes do que, as respostas que foram e têm sido dadas a elas. Uma terceira é que a superação do que se pode chamar ignorância ignara, isto é, a ignorância que pensa que sabe e não sabe e que se opõe à ignorância douta (em latim, docta ignorantia e que consiste no reconhecimento da ignorância de muitas coisas), sendo esta superação condição indispensável para ascender à ignorância douta e para se percorrer o caminho de encontrar soluções para os problemas filosóficos. Uma quarta tese é que a Filosofia, enquanto estudo de determinadas interrogações e tentativa de respondê-las, precisa apoiar-se na sua história escrita, sua historiografia, alimentar-se desta de um modo vital. A historiografia é um discurso que expõe e interpreta as obras filosóficas, situando-as em um desenvolvimento histórico que revele as continuidades, as rupturas, as influências, o nascimento e renascimento de escolas, etc. Uma quinta tese e de que não se pode ensinar a filosofia, se esta é entendida como um corpo de doutrinas subscritas pela comunidade dos filósofos, já que esse corpo simplesmente não existe; só se pode ensinar a filosofar. E a última tese é a de que em Filosofia, como em qualquer outra forma de episteme, deve-se cultivar o enfoque racional e desinteressado na produção e formulação das hipóteses e dos princípios a serem demonstrados ou defendidos.
Assinalei acima uma dificuldade para se formular o método em filosofia. Uma outra dificuldade é a seguinte. Parece haver uma inseparabilidade entre a prática metodológica do filósofo e sua doutrina substantiva. Se dois filósofos diferem muito um do outro no que diz respeito à doutrina, provavelmente vai haver uma divergência tão grande quanto ao método que fica inviável pensar uma metodologia que ambos aceitem. Para dar um exemplo. O filósofo (e também psicólogo) William James (1842-1910), americano, fundador do pragmatismo, afirma que a história da filosofia é, numa grande medida, a história de um conflito de temperamentos humanos. Ora, o temperamento não é reconhecido como uma razão, a qual tem de ser relativamente impessoal, para poder sustentar adequadamente as conclusões. O temperamento do filósofo é algo muito pessoal, e segundo James atua muito mais fortemente do que as premissas apresentadas como objetivas e impessoais. James tem uma visão pragmatista, e não racionalista nem empirista nem cientificista, da Filosofia. Vejam que a confiança na utilização de uma metodologia depende de se excluírem certas visões da Filosofia, como esta de James, que a tornam demasiado pessoal e subjetiva.
Quem tem essa visão pragmatista da Filosofia não pode estar de acordo com alguém que pensa, por exemplo, que a filosofia deve ser fruto de um intelecto comprometido com procedimentos que não dependam da subjetividade de cada um. Uma concepção deste último tipo é defendida, por exemplo, por Bertrand Russell (1872-1970), matemático, filósofo, educador e ativista de causas sociais. Dele é o seguinte trecho – aliás, semelhante a um outro, de Nietzsche, que citarei em seguida – sobre esse assunto: “Os filósofos, desde Platão a William James permitiram que suas opiniões sobre a constituição do Universo fossem influenciadas pelo desejo de edificação. Sabendo, ou julgando saber, quais crenças tornariam os homens mais virtuosos, eles inventaram argumentos, alguns dos quais bem falaciosos, para provar que essas crenças são verdadeiras.”Subjacente a esse pensamento está a crença de que é possível produzir uma filosofia objetiva.
Eis agora o trecho de Friedrich Nietzsche (1844-1900):“Para explicar como um filósofo chegou às suas mais remotas afirmações metafísicas, é sempre bom e sábio se perguntar que moralidade ou edificação é visada por essa metafísica. Em conformidade com isso, não acredito que um impulso ao conhecimento tenha sido o pai da filosofia, mas acredito, ao contrário, que um outro impulso apenas empregou o conhecimento – e um falso conhecimento – como instrumento”.
O outro impulso, de que o texto fala, é a vaidade; Nietzsche chama os grandes filósofos do passado de “monstros de vaidade”. No texto de Russell com certeza – o de Nietzsche também, talvez – nós temos um pensamento que é aproveitável para quem quer defender uma posição da filosofia como uma episteme respeitável no mesmo nível, pelo menos, que muitas outras, e criticar aquela posição do subjetivismo temperamentalista de William James. Temos aí, portanto, duas grandes posições contrárias, e é claro que vai ser impossível você reunir esses dois grupos de filósofos e tentar fazer com que eles cheguem a algum acordo a respeito do método em Filosofia, dada essa inseparabilidade, que parece existir, entre a teoria e a prática do método, de um lado, e a doutrina substantiva do outro. Essa então é mais uma dificuldade para se responder a questão de qual é o método em Filosofia.
Mas esqueçamos um pouco essas dificuldades e tentemos dizer algo de positivo sobre o método em Filosofia. Vou enumerar o que, por falta de melhor nome, chamarei de componentes subjetivos e componentes objetivos do método em Filosofia.

1 - Componentes subjetivos do método filosófico
Nos componentes subjetivos vou distinguir duas coisas: um elemento ético, e um outro que vou chamar de elemento temperamental. No que diz respeito ao primeiro, estou pensando, por exemplo, numa reflexão feita para Claude Bernard (1818-1878), fisiologista, médico e pensador da ciência. Ele afirma que o cientista, antes de entrar em seu laboratório, tem de tomar uma atitude importante, que é a de desprender-se dos preconceitos e das idéias recebidas. Ora, esse é um esforço que podemos, com propriedade, caracterizar como ético.
O filósofo deverá estar comprometido com as normas ou regras do ‘jogo filosófico’. Quais são essas normas ou regras? Essas normas mandam que o filósofo, ou o aprendiz de filósofo, ponha o seu amor à verdade e seu empenho em chegar ao conhecimento, acima, digamos assim, de quaisquer outros amores seus, em si mesmos legítimos, que possam conflitar com esse primeiro amor. Então, na medida em que você se apresenta, aos outros e a si mesmo, como filósofo, como genuinamente filósofo, você implicitamente estará fazendo, digamos, um ‘juramento profissional’ que, embora não seja público ou registrado em ata, nem conste formalmente de instrumentos jurídicos, é muito significativo e poderia ser enunciado, por exemplo, nos seguintes termos: “Prometo, na medida de minha capacidade, pôr o interesse pela descoberta da verdade e pela sua justificação acima de qualquer outro interesse meu que possa conflitar com ele”. E promessa, mesmo informal, é dívida; isto é, o sujeito tem uma obrigação, para com a comunidade de seus interlocutores, de agir em conformidade com essa promessa. Esse é, portanto, o componente ético que tem de estar presente no caráter e na conduta intelectual do pesquisador em geral, talvez mais particularmente em ciências humanas, e mais ainda nessa forma de episteme que se chama Filosofia. Esse é o componente ético e é nele que reside a característica da episteme de ser desinteressada, referida no início do artigo.
Vamos agora ao componente de temperamento. Há, nesse amor à verdade – nesse amor que ama mais a verdade do que a própria doutrina que se tem num certo momento da vida – um elemento que não é ético, e que estou chamando de temperamental. Ele consiste em se identificar emocionalmente com o que há de mais excitante nesse jogo – que é o jogo da verdade, o jogo de buscar a verdade – jogo no qual você ‘marca gol’ quando encontra a verdade ou algo próximo dela, e marca gol contra quando defende o erro porque deseja que ele fosse a verdade.
Suponhamos que, num jogo amador e amistoso de futebol, você marque um gol agindo  em desacordo com as regras do jogo. Pois bem, assim como nessa situação não tem graça ganhar do adversário roubando, por exemplo, marcando gol com a mão sem que o juiz veja, também não tem graça – é esse o elemento puramente temperamental, psicológico, isto é, extra-moral – não tem graça defender uma proposição teórica, uma tese sabendo que você está escondendo dos outros, e possivelmente de você mesmo, evidências contrárias a essa proposição, ou que você está como que ‘fabricando evidências’ favoráveis a ela. Com esse comportamento seu, o jogo perde justamente o que ele tem de mais essencial, de mais excitante, que é a única grande razão de ele ser disputado.
De onde vêm a conveniência e a necessidade de se enfatizarem esses elementos éticos e temperamentais? Vêm do fato de que há forças poderosas, dentro de nós mesmos, que agem insidiosamente numa direção contrária a eles. Essas forças foram objeto de atenção de uma tradição de pensamento que se constituiu na Europa continental na época moderna. Ela se chama a vertente dos moralistas franceses, e começa com Michel de Montaigne, no século XVI, passa pelo século XVII, com La Rochefoucauld e Blaise Pascal (que é, por sinal, uns dos gigantes do pensamento ocidental), percorre o século XVIII com La Bruyère, Chamford, Vauvegnargues e outros, e tem continuadores no século XIX e mesmo no século XX. Essa tradição pensou os fatores internos que atuam como obstáculos tanto ao cultivo do temperamento sintonizado com o que há excitante nas regras do jogo da verdade, quanto à adoção de condutas em conformidade com a norma ética de não fabricar evidências, não ocultar elementos desfavoráveis à opinião própria, etc. Essas forças são de fato poderosas, daí a necessidade de se enfatizar tanto o lado ético quanto o lado temperamental dessa coisa que se chama o amor da verdade, o apreço pelo saber, a filosofia (Aproximadamente, em grego “sofia” e “filo” se traduzem respectivamente por “sabedoria” e “amante de”.
Com a ajuda dessa tradição, reflitamos então sobre esses fatores internos. Entre os traços de temperamento que prejudicam o exercício do amor ao saber, figuram o amor-próprio(num certo sentido desse termo) e a vaidade. Ouçamos Pascal a respeito de um e de outro: “A natureza do amor-próprio, desse eu humano, é de amar apenas a si e não considerar a não ser a si. Mas ele não vai conseguir impedir que esse objeto que ele ama seja cheio de defeitos e de miséria. Ele quer ser grande, ele se vê pequeno; ele quer ser feliz, ele se vê miserável; ele quer ser perfeito, ele se vê cheio de imperfeições; ele quer ser objeto de amor e de estima dos homens, e ele vê que seus defeitos não merecem senão a aversão e o desprezo deles. Esse embaraço em que ele se encontra produz nele a paixão a mais injusta e criminosa que se possa imaginar, porque ele concebe um ódio mortal contra essa verdade que o repreende e que o convence de seus defeitos.
Ele desejaria aniquilá-la, e não podendo destruí-la nela própria, ele a destrói, tanto quanto ele pode, no seu conhecimento dela... Isto é, ele toma todo o cuidado em cobrir os seus defeitos aos olhos dos outros, e aos seus próprios olhos” (grifo meu). Essa descrição que o autor faz do amor-próprio é a descrição de algo que está arraigado na natureza humana e que não poupa ninguém, conforme se infere desta outra passagem dele: “Há diferentes graus dessa aversão pela verdade, mas pode-se dizer que ela está em todos os homens em algum grau, porque ela é inseparável do amor-próprio”. Pascal também inclui a todos nós, inclusive a ele próprio, entre as vítimas intelectuais desse outro inimigo interno insidioso que é a vaidade: “A vaidade está tão arraigada no coração do homem, que um soldado, um criado, um cozinheiro, um carregador, se vangloria e quer ter seus admiradores, e os filósofos também querem ter. E aqueles que escrevem contra também querem ter a glória de terem escrito bem, e aqueles que os lêem querem ter a glória de tê-los lido. E eu que escrevo isso talvez tenha essa vontade também”. E, podemos e devemos acrescentar, nós outros que escutamos essas palavras de Pascal – nós outros, quer dizer, eu que escrevo isso e vocês que me lêem – também talvez tenhamos essa vontade.
Estas reflexões se alinham com outras, que mostram quanto poderosas são as forças subjetivas e psicossociais que bloqueiam o cultivo do temperamento amante das regras do jogo e do senso de obrigação e de obediência a elas.
Mais tarde, e mais ou menos no mesmo espírito, escreveu Arthur Schopenhauer: “Essa filosofia universitária, carregada de uma centena de interesses e mil comprometimentos diversos, caminha usando rodeios e avançando por caminhos tortuosos sem jamais perder de vista o temor do Senhor, a vontade do ministério, as exigências do editor, o favor dos estudantes e a boa amizade dos colegas”. Schopenhauer é do século XIX, o que nos faz ver que essa é uma temática recorrente; e isso só acentua a importância, para o filósofo e o cientista tanto quanto para os aprendizes de filósofo e de cientista, de se protegerem contra esses obstáculos internos poderosos. Daí a necessidade de se insistir sobre a importância de se educar o espírito, de educar a sensibilidade, para que cultivemos tanto o gosto pelas regras do jogo da verdade, quanto a disposição de se obrigar a agir em conformidade com o preceito que manda colocar o amor da verdade acima de outras possíveis inclinações conflitantes com ele, o que não raro é muito difícil, e às vezes talvez mesmo impossível, de se fazer. Um parênteses. Temos aqui três filósofos do passado, um do Século XVII, o francês Pascal, e os outros dois, os alemães Schopenhauer e Nietzsche, do século XIX. Ocorre que quanto mais o tempo passa – o tempo das últimas quatro ou cinco décadas – tanto mais fica patente a atualidade deles, especialmente talvez a de Nietzsche e a de Pascal. Mas no caso deste pensador francês a atualidade é mais surpreendente e admirável do que no dos dois alemães: estes, e Nietzsche mais do que Schopenhauer, nos são bem mais próximos, não só no tempo, mas culturalmente. Já Pascal era contemporâneo de Descartes, e viveu a maior parte de sua vida na primeira metade do século XVII, um século já remoto e culturalmente muito contrastante com o nosso, o que torna ainda mais admirável a grande atualidade que ele tem, tanto como filósofo moral, quanto como filósofo da mente – com suas reflexões sobre a imaginação e os traços de temperamento e de caráter – e também como pensador do conhecimento humano.
Duas palavras sobre a relação entre o componente ético e o componente temperamental.
Primeiro, não há uma distinção completa entre os dois: um ou outro elemento de um deles pode ser também elemento do outro. Por exemplo, a coragem intelectual está incluída na área fronteiriça entre o componente temperamental e o componente ético, com um pé num deles e o outro pé no outro. Com efeito, a coragem parece exigir tanto um temperamento condizente, quanto um apropriado senso de dever. Segundo, a prática da dimensão ética é indispensável; ou seja, o exercício da dimensão temperamental não basta por si só. Não basta a vantagem da virtude temperamental, mesmo quando ela existe num grau elevado. E o exercício do primeiro, do ético, é grandemente facilitado pelo cultivo do temperamento que seja mais ou menos naturalmente amante das regras do jogo, amante do jogo limpo Ou seja, o traço temperamental tem de figurar no equipamento com o qual o investigador empreende a busca de respostas aceitáveis para as questões filosóficas, mas ele não é suficiente.
O traço temperamental e o componente ético são mais importantes – atenção para isso – onde se tem menos controle científico, tanto na formulação quanto na defesa de hipóteses. Sem a quantificação e os conceitos da matemática e da lógica, que inclusive algumas disciplinas humanas, como a Economia, utilizam sem os procedimentos experimentais, que certas psicologias usam, e sem o sofisticado aparato tecnológico posto a serviço das ciências biológicas e biomédicas, da astronomia, sem isso tudo o fato é que nós, filósofos, dependemos daquelas duas condições num grau bem maior do que nas modalidades da episteme em que há recursos daqueles tipos. Então esse bipê é um suporte fundamental para a sustentação, ainda que relativa, da busca do saber em Filosofia e na maior parte das ciências humanas. Dentro das humanidades, é a Filosofia que precisa deles mais ‘desesperadamente’. Por exemplo, a ciência política trabalha com dados quantitativos (por exemplo, com resultados de eleições), embora esses dados sejam sujeitos, eles próprios, a serem interpretados diversamente por diferentes estudiosos. Ou seja, o praticante da episteme filosófica precisa ser mais virtuoso, no que diz respeito àquelas duas qualidades, do que os praticantes das demais modalidades da episteme.
Estou falando, portanto, da posse de um equipamento, que inclui elementos intelectuais, emocionais e éticos, que é parte de um discurso do método para bem conduzir o intelecto e procurar, se não a verdade na Filosofia, pelo menos evitar o erro nela.

2 - Componentes objetivos do método filosófico
Encerrada a reflexão sobre as condições subjetivas, entro na consideração das condições que, por falta de termo melhor, chamei de objetivas. Voltemos à tese segundo a qual os problemas da Filosofia são mais importantes do que as respostas a eles. É possível defender essa tese com pelo menos duas ou três boas razões, mas isso não será feito aqui. Apenas registro a respeito o testemunho de dois filósofos, um dos quais é Bertrand Russell, já mencionado antes. Escreve ele: “Em filosofia o que é importante não são tanto as respostas que são dadas, mas antes as questões que são colocadas. A esse respeito a Escola de Mileto merece a fama que tem”. As respostas que essa Escola deu sobre a constituição do mundo físico hoje soam infantis para nós, mas permanecem as perguntas que eles foram capazes de fazer, bem como o método que eles utilizaram para respondê-las. O outro é o alemão Karl Jaspers (1883-1969), que foi também um psiquiatra influente. Ele escreveu: “Filosofia significa ir a caminho, seguir, continuar, suas questões são mais essenciais do que as respostas, e toda resposta se converte numa nova questão”.
Reflitamos novamente sobre as questões filosóficas.
Observe-se que elas são interessantes intrinsecamente, isto é, nelas mesmas. As pessoas que cuidam de respondê-las, querem – simplesmente querem – encontrar respostas para elas. Esse parece ser um desejo mais ou menos natural.
Mas, conforme foi desenvolvido mais atrás, um problema filosófico não é definido como tal (isto é, como problema) independentemente de um sujeito particular. Um filósofo espanhol contemporâneo, Julián Marías, nascido em 1916, escreveu sobre isso e afirmou que não basta o assim chamado problema vir numa forma interrogativa e versar sobre um assunto dito filosófico. Por exemplo, “O que é a liberdade?”, “Como se conciliam liberdade individual e controle social?” É preciso, além disso, que aquilo que se pergunta tenha com a pergunta uma relação visceral tal que essa interrogação lingüística se torne um problema vital para ele, um problema mesmo, no sentido de incomodá-lo, de ser um obstáculo que ele tem de transpor para continuar no caminho. Quer dizer, o assim chamado problema tem de ter uma real problematicidade. Esse é um elemento que faz o problema interessante, que torna a questão filosófica interessante. As questões da Filosofia estão entre as questões teóricas que mais fortemente despertaram, e continuam despertando, o interesse dos seres humanos; são questões que estes colocaram em diversos momentos do passado, e insistem em continuar colocando hoje.
Boa parte do que chamamos Filosofia consiste, portanto, em levantamento de certas questões e tentativa de respondê-las; a Filosofia se apresenta como levantadora de questões, como clarificadora de questões, como modificadora de questões, como crítica de questões, e como investigadora do relacionamento dessas questões umas com as outras e com o momento sociocultural em que elas se formulam. Vamos pensar, então, na Filosofia como um certo conjunto de questões, e nossa pergunta é: qual seria o método para investigar essas questões? Diz um interessante filósofo inglês, Isaías Berlin (nascido em 1909 e morto em 1997), pensador político e historiador das idéias: “Uma marca das questões filosóficas é esta, que você não sabe bem onde olhar para buscar uma resposta”; ou seja, você não sabe como proceder exatamente para chegar a uma resposta, entre outras coisas por não se tratar de uma questão científica, experimental ou não. E continua ele: “Quando não existe um método estabelecido para se fazer algo, você faz o que pode. Você simplesmente tenta resolver paciente e esforçadamente. A Filosofia assim concebida, isto é, como o estudo de certos problemas, é pensada, portanto, essencialmente como uma atividade, e não como um corpo de proposições afirmadas como verdadeiras, como, por exemplo, a Aritmética e a Geografia. Encontramos a Filosofia assim concebida em autores tão diferentes como Ludwig Wittgenstein (1889-1951) e Julián Marías, sendo o primeiro um pensador austríaco naturalizado britânico, para quem a Filosofia é uma atividade de ‘terapêutica intelectual’ que visa livrar-nos de males doutrinais. Para Marías, que nesse ponto segue seu mestre Ortega y Gasset, um outro espanhol, a Filosofia é um “quehacer” (um afazer), ou seja, um fazer mais do que qualquer outra coisa.
O método, então, qual seria? Em conformidade com o que foi dito antes, ele teria de ser um método para a atividade de estudar e trabalhar essas questões. Seria um método, primeiro, para melhor detectar questões que vale a pena levantar, no sentido de que vai ser fecundo levantá-las em um dado momento em que elas deverão encontrar repercussão. Segundo, para fazer avançar nossa compreensão desses temas e questões, bem como da história de seu surgimento, ressurgimento e transformações sofridas ao longo do tempo, de seu relacionamento com a história passada, e da interligação desses temas com elementos não-filosóficos do momento histórico. Terceiro, um método que nos guie em como melhor se abrir a influências retificadoras de nossa visão atual da problemática, e de sua atualidade ou não.
Nesse quadro, há uma disciplina que passa a ocupar um lugar especial na teoria do método filosófico, e ela é a Filosofia da Linguagem. Por que isso? Pelo seguinte. De um modo geral, é prudente, metodologicamente, apoiar-se no mais próximo para se conhecer o mais distante, no mais concreto para se conhecer o mais abstrato, no mais familiar e observável para se conhecer o menos familiar e não-observável. Sendo assim, uma idéia que parece boa é observar a linguagem, estudar a linguagem, que é afinal de contas o instrumento com o qual nós filosofamos; nosso instrumento não é o telescópio, nem o microscópio, nem qualquer outro produto de avanços tecnológicos. A linguagem é feita de comportamentos verbais, de ações lingüísticas, e a idéia é analisar esses comportamentos e ações, com vistas a aprender a direcioná-los para melhor pensar as questões filosóficas.
Nesse terreno, uma das coisas que foi feita é refletir sobre o que se chama erro categorial, e avanços foram feitos aí. Um erro categorial ocorre quando você confunde categorias diferentes, ou de níveis diferentes: você põe numa categoria um objeto que não pertence a essa categoria, e nós somos levados a isso pela linguagem, pelo que podemos chamar de armadilhas da linguagem, que nos induzem ao erro, que nos ludibriam, nos “enfeitiçam”. Um exemplo. A linguagem inclui substantivos como ‘mente’, ‘consciência’. Ora, muitos substantivos denotam objetos, entidades. Então passamos a subentender que, do mesmo modo que o objeto denotado por ‘mesa’ existe, também deve existir um objeto, uma coisa, denotado por ‘mente’, por ‘consciência’. Ocorre, no entanto, que é duvidoso que esses objetos existam; o que parece existir são processos mentais e não “a mente”, processos conscientes – também processos pré-conscientes, processos inconscientes – e não “a consciência”; mas a tendência é, deixando-se enfeitiçar pelos substantivos, supor que existam, como entidades, a mente, a consciência, e outras coisas. Então, a partir da existência de substantivos – que são reais, sim, mas são uma realidade lingüística – ‘substantivamos’ a coisa, no nível da realidade, isto é, inventamos uma espécie de substância a que a palavra se refere. Ou seja, de tanto falar “a mente”, “a consciência”, acabamos por acreditar que existe uma coisa, um objeto, uma entidade, referida pela palavra.
Esse tipo de contribuição foi trazida por filósofos como Gottlob Frege, também lógico e matemático (1848-1925). Ele via a tarefa da Filosofia como a de “romper com o domínio da palavra sobre o espírito”, tema ecoado na obra de Wittgenstein12, para quem o núcleo do exercício da Filosofia é libertar-se do feitiço, do enfeitiçamento, da linguagem. Então, parece que a Filosofia da Linguagem é uma disciplina metodológica primeira. Freqüentemente o exercício da filosofia da linguagem é clarificar conceitos, mas não se trata de fazer clarificações lingüísticas sem interesse substantivo para a episteme filosófica. Não se trata, tampouco, meramente de clarificar o discurso do senso comum. Trata-se de tomar as idéias e o vocabulário do senso comum apenas como um ponto de partida para uma compreensão analítica elaborada. Vamos dar exemplos desse tipo de pergunta que é filosoficamente relevante. “O que é um direito humano?” “Somos naturalmente dotados de direitos, ou os direitos são uma atribuição convencional?” “A liberdade, no sentido da Filosofia da Ação, é um traço que se descreve como se descreve, por exemplo, o comportamento agressivo? Ou não?” “A liberdade, no sentido da Filosofia Política, tem a natureza de um direito que o sujeito tem? Ou é um traço factual?” É no exame dessas questões, e das implicações delas, que a Filosofia da Linguagem ajuda, ou pode ajudar. Então a linguagem é de fato – e isso é um ponto pacífico – orientadora e desorientadora do intelecto. É um instrumento do acerto quando se acerta, e do erro quando se erra. Ora, o conhecimento desse instrumento, dos seus meandros, de suas artimanhas, de suas funções, permitiria, podemos acreditar, promover o acerto e prevenir o erro.
O tratamento do que chamei de condições subjetivas e objetivas constitui uma reflexão sobre o método, sobretudo em ciências humanas e, em especial, em Filosofia. Sobre o método fiz uma reflexão que tem duas partes, basicamente. Uma sobre as condições subjetivas, e aí temos uma grande e fantástica contribuição da filosofia européia continental, especialmente da vertente dos moralistas franceses e de seus continuadores. No que diz respeito aos componentes objetivos, aproveitei-me de uma tradição filosófica de um tipo diferente da primeira, que é a Filosofia Analítica. Essas duas tradições confluem para o mesmo ponto. E não surpreende que assim seja, porque no fundo, e em última análise, ambas as tradições pensaram, e estão pensando, as questões da Filosofia, tanto as questões de método quanto as questões substantivas.

Observação necessária
Tentar dizer o que a Filosofia é, e desse modo esperar transmitir a quem ouve ou lê o espírito dela, o ‘coração e a mente dela’, é uma empreitada nela mesma com uma séria limitação, mesmo que alguém consiga dizê-lo de um modo excepcionalmente bom, ou o melhor possível. É que a Filosofia propriamente dita – isto é, aquela que é praticada por aqueles que chamamos filósofos, e que não incluí nem estudos de comentador nem histórico-filosóficos propriamente ditos – é uma atividade, uma arte, portanto algo que envolve o cultivo de determinados interesses e habilidades. E, como toda arte, ela não é suscetível de ser explicada apenas por meio de discurso. É necessário, para se ter dela uma explicação menos abstrata, mais concreta e aprofundada, que se a pratique; é preciso que o dizer de quem explica se combine intimamente com o fazer filosófico, com a atividade filosofante – ainda que em nível do aprendiz de filósofo – daquele para quem a explicação está sendo dirigida. Suponhamos que alguém fosse explicar/descrever, para um grupo de dançarinos, todos os passos e a coreografia de uma dança não-familiar. Uma maneira seria fazê-lo apenas discursivamente, digamos com grande precisão vocabular e riqueza de detalhes. Uma outra maneira seria combinar a primeira com exibição de fotografias, com a exibição de um vídeo, ou, melhor ainda, com a encenação ao vivo pelos praticantes dela. Com isso, os ouvintes/espectadores teriam da nova dança uma compreensão boa, mas limitada. A compreensão mais completa e aguda da platéia viria com a combinação do anterior com a atividade de seus componentes em tentar praticar a própria dança objeto da explicação. Embora filosofia e dança sejam coisas muitíssimo diferentes, há um importante e decisivo elemento comum entre elas, que é serem formas de arte (ao menos no sentido amplo, mas alguns diriam que não só nele). Na segunda trata-se de arte de movimentar e controlar o corpo, de criar e executar movimentos associados com o ritmo e a melodia da música. Na primeira se trata-se da arte de levantar uma questão nestes ou naqueles termos (ou de abster-se de levantá-la, quando se julgar epistemicamente inapropriado fazê-lo), da arte de buscar respostas e avaliá-las, da arte de argumentar (ou de abster-se de fazê-lo quando se pressente que já se chegou ao ‘inargumentável’, ao ‘axiomático’). As teorias num caso e as instruções no outro estão ambas nos livros, no discurso, mas somente incluindo o exercício da arte é possível começar a ter uma compreensão mais realista e aprofundada do objeto que está sendo explicado.
As considerações deste parágrafo final têm conseqüências (construtivas) para os estudiosos no campo do comentário filosófico e no da história das idéias filosóficas.


______________________
FONTES: (http://acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/40351/3/2ed_filo_m1d1.pdf

Nenhum comentário:

Postar um comentário