Jorge Alberto Molina'
"Queremos
aqui caracterizar aquelas produções textuais que classificamos como textos de Filosofia.
Num romance, como Madame Bovary, os personagens são seres humanos, reais
ou fictícios, como Ema Bovary, Monsieur Homais, o Doctor Bovary etc. No texto
filosófico, os personagens são as teses defendidas. Essas teses estão apoiadas
sobre argumentos. O texto filosófico é um texto de tipo argumentativo. Mas essa
é ainda uma caracterização muito geral, pois um ensaio sociológico, um
editorial de jornal, um sermão, são também textos argumentativos. De maneira
que essa descrição é insuficiente, a menos que precisemos, com mais exatidão,
quais são os traços específicos da argumentação filosófica. O que dificulta ir
além daquela caracterização muito geral é o fato de o discurso filosófico
manifestar-se através de uma grande variedade de gêneros textuais
diferentes".
Antes
de Sócrates, a Filosofia usou como forma de expressão a poesia, e ainda no
período romano-helenístico encontramos De rerum natura, de Lucrécio,
como exemplo de poema filosófico. Platão e também Aristóteles usaram o diálogo
como veículo para expressar suas ideias. O diálogo filosófico está presente até
na Idade Moderna, lembremos por exemplo o Diálogo sobre a conexão entre as ideias e as palavras, de Leibniz, e os Três diálogos entre Hilas e Filonius, de Berkeley. As cartas têm servido como instrumento de expressão de
ideias filosóficas. Podemos citar exemplos célebres como a correspondência
entre Leibniz e Clark sobre a natureza do espaço e do tempo, a correspondência
entre Leibniz e Arnauld sobre a noção de substância, as cartas a Lucílio de
Sêneca etc. A autobiografia tem sido usada para expressar concepções
filosóficas, assim As Confissões de Santo Agostinho e as de Rousseau. Os filósofos
também se apropriaram do gênero apologético e, como mostra disso, encontramos a
Apologia de Sócrates, de Platão, A
Cidade de Deus, de Santo Agostinho, e
Os pensamentos, de Pascal. O tratado científico foi introduzido por
Aristóteles como gênero textual para a expressão de filosofemas. Existem também
textos filosóficos formados a partir de aforismos, como o Tractatus, de
Wittgenstein. Face a essa grande variedade de gêneros textuais usados pelos
filósofos, nos perguntamos sobre a justificativa para colocar produções
pertencentes a gêneros tão diferentes sob o rótulo comum de texto filosófico.[
... ]
Podemos,
então, afirmar o seguinte: parece difícil apontar a priori um conjunto de
marcas necessárias e suficientes que outorguem uma especificidade ao texto
filosófico. Não podemos definir o texto filosófico por meio de uma cláusula do
tipo 'texto filosófico é ABC, e somente aquilo que seja ABC. .. poderá ser
chamado de texto filosófico'. No entanto, pensamos que, malgrado a
impossibilidade de definir diretamente o que é um texto filosófico, podemos
obter luz sobre o nosso tema, comparando o discurso filosófico com outros tipos
de discursos: o científico, o jurídico, o teológico e o literário.
[ ... ]
Diferenciar
a Filosofia da Literatura é mais difícil, e tememos que qualquer critério de
demarcação que seja dado entre as duas disciplinas possa ser sempre impugnado.
Platão considerava que a Poesia busca comover e que a Filosofia procura a verdade3.
O bom poeta, segundo ele, é aquele que sabe provocar em nós as emoções
apropriadas. Aristóteles considerava o discurso poético como aquele que
representa coisas fictícias como possíveis, enquanto a Filosofia é um discurso
que expressa o que é, da forma que ele é. Ou, dito de outra forma, o discurso
filosófico descreve como é o que existe4. Hegel considerava que a
arte representa o universal sob a forma da sensibilidade, ao passo que a Filosofia
representa o universal sob a forma de conceitos. Agamêmnon representa a hybris ou
desmesura comum a vários governantes; Antígona e Creonte, o conflito entre a
razão de estado e a piedade familiar; Dom Quixote, o espírito sonhador e
aventureiro.
Personagens
da literatura representam conceitos ou situações universais. Então, baseados
naqueles três filósofos, podemos dizer que o discurso literário se diferencia
do filosófico pelo fato que: I) ele busca suscitar em nós emoções; II) ele tem
um caráter fictício; lII) ele representa situações universais (o universal) sob
a forma de um conjunto de representações individuais."
I Doutor em Lógica e Filosofia da Ciência pela UNICA MP,
professor do Departamento de Ciências Humanas c docente do Mestrado em Letras
da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC.
2 Estou usando a distinção entre gêneros e tipos textuais
apresentada em Marcuschi (2002).
3 RepÚblica X, 605d-607d.
4 "Pelo exposto
se torna óbvio que a função do poeta não é contar o que aconteceu mas aquilo
que poderia acontecer, o que é possível, de acordo com o princípio de
verossimilhança e da necessidade" (Poética, 51 a 36-51 b 11).
"Deve preferir-se o impossível verossímil ao possível inverossímil" (Poética,
60a 27).
5 "[ ... ] a função da
arte consiste em tornar a ideia acessível à nossa contemplação, mediante uma
forma sensível e não na figura do pensamento e da espiritualidade em geral [ ..
.]" Hegel (1993). p. 47.
A
leitura dos textos filosóficos. Revista
Signo, v. 31. 2006. p. 37-47. Disponível em: _____________
Fontes: (SÃO PAULO-SEE, Caderno do professor: Filosofia, EM, 3ª S., V.4, pp.10-11)
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