domingo, 16 de outubro de 2011

O QUE E SER POBRE


1. POR QUE A MAIORIA DAS PESSOAS É POBRE E PARECE ACEITAR ISSO COMO NATURAL?
Por que parece normal algumas pessoas viverem em conforto, sem problemas materiais, enquanto outras passam, principalmente, dificuldades durante toda a vida? O que haveria de errado com o ser humano? Por que há fartura e fome em um mesmo país, e tantas diferenças até entre vizinhos?
Temos duas possibilidades de resposta que merecem reflexão:
a) A primeira pode ser resumida nesta fórmula: "Isso ocorre porque as pessoas não têm estudos", o que transfere a responsabilidade para quem não estudou.
b) A segunda, diz respeito ao trabalho, ao se responsabilizar quem não trabalha. Em ambas as respostas, a responsabilidade é dos próprios pobres. Enfim, em muitos casos, aponta-se a falta de vontade das pessoas de trabalhar ou de estudar, desenhando-se, assim, a preconceituosa e quase clássica figura do marginalizado.
A respeito do primeiro argumento não há dúvida de que a pobreza dos indivíduos pode ser atrelada à falta de estudo, porém não em uma perspectiva individual e, sim, social.
A responsabilidade, neste caso, em primeiro lugar é do Estado, e de toda a sociedade, pois em uma adequada política educacional, bem estabelecida e duradoura, torna-se mais difícil a participação política, base para a construção da democracia. Por outro lado. é necessária uma crítica a respeito do comportamento de todos em relação à educação, o que inclui pais, professores e funcionários da escola. alem de o aluno. Responsabilizar apenas o Estado é anular completamente o compromisso de outros agentes da educação; no entanto, restringir, também, a responsabilidade a esses agentes indica falta de reflexão e de entendimento sobre o papel do Estado na implantação de políticas públicas que favoreçam a todos.
A estrutura educacional está permeada de problemas éticos e políticos. Éticos, porque exigem o compromisso social dos agentes: professores são interpostos entre as limitadas condições de trabalho e os alunos; funcionários e diretores dividem-se entre as rotinas burocráticas da escola e a educação integral do aluno e a facilitação do trabalho do professor: os pais percebem que deve haver harmonia entre estas duas necessidades: sua vida e a formação dos seus filhos, o que implica respeitar a escola, sobretudo ao reconhecer a importância dos professores. No que diz respeito aos problemas políticos, a relação é bem mais ampla e exige o compromisso de todos os agentes, por exemplo, no sentido da construção democrática da vida escolar, do bom uso do dinheiro público; enfim, da necessidade de vigilância constante da sociedade em relação à melhoria da escola.
De certa forma, a discussão sobre a educação abrange aspectos relativos também ao trabalho, já que o acesso ao mercado e os níveis salariais estão diretamente associados ao nível de escolaridade dos indivíduos.

2. A IDEOLOGIA
Resumindo os dois argumentos, a superação da pobreza está associada à educação para o trabalho e. também, ao emprego. Em certo sentido, ainda se acredita nessa relação. Por quê? Em consequência, principalmente, da ideologia. Superar ou eliminar a pobreza não é algo passível de ocorrer, simplesmente, por meio da educação e do trabalho, mas pode ser resultado de políticas sociais decorrentes de maior participação de todos quanto a decisões sobre distribuição de renda. É bem verdade ser possível encontrar alguns indivíduos que conseguem maior renda e acesso a outros benefícios por meio desses quesitos. No entanto, rotineiramente, essa conquista não é uma regra; é exceção no universo social, justamente porque se trata de conquista de alguns ou de poucos, e não de todos, nem sequer da maioria. Por outro lado, a política da igualdade não está apenas interessada em uns e outros, mas em todos. "Todos" é uma das palavras mais importantes para a política que se pretende democrática, solidária e promotora de sociedade sem exclusão.

2.1. A IDEOLOGIA PARA MARX
Para Marx, a atividade de sobrevivência do nosso corpo exige que produzamos, por meio do trabalho, as condições de nossa existência, ou seja, para comer, dormir, curar nossas doenças, morar, todas as pessoas precisam produzir os meios para sua sobrevivência. No entanto, há pessoas que vivem à custa do trabalho alheio, ao explorar o trabalho alheio e provocar a separação entre o homem que trabalha e o fruto de seu trabalho, que passa a ter como finalidade beneficiar outros.
Os indivíduos que vivem da alienação do trabalho de outros, para Marx, também criaram um sistema de crenças que mantém e perpetua seu poder sobre a maioria. Em vez do uso puro e simples da força, criam um discurso capaz de justificar a exploração do trabalho alheio. Tal discurso justificador da exploração alheia é a ideologia, segundo Marx. Assim, as ­pessoas acabam por considerar que é natural e justo o sofrimento decorrente de seu lugar na sociedade. Ainda segundo Marx, a sociedade é dividida entre aqueles que vendem sua força de trabalho e os que compram esta força de outrem.
Os proprietários dos meios de produção - como a terra, o comércio, as indústrias, as empresas em geral -, e, ainda, no caso da sociedade contemporânea, os proprietários de bancos e dos grandes veículos de comunicação, não precisam vender a força de trabalho para ninguém, ou seja, não se tornam mercadorias. Os que não são proprietários destes mesmos meios de produção precisam vender a sua força de trabalho, tornando-se mercadoria.
A ideologia que justifica a manutenção dessa diferença entre os proprietários e os não proprietários colabora e mantém uma sociedade na qual, em outras palavras, os ricos continuam ricos e os pobres permanecem pobres.
A ideologia é um sistema que produz valores, representações e desejos, muitos dos quais apenas reproduzem relações sociais sem questioná-las, justificando, assim, as condições de desigualdade social.

3. COM OS ALUNOS
Inicialmente, peça que recortem em revistas e jornais imagens que caracterizem a desigualdade social. Depois, com base nas imagens. é importante discutir como é possível que as pessoas vivam naquelas péssimas condições de moradia, saúde etc. Como é possível enxergarmos as desigualdades e, mesmo assim, elas continuarem a existir? O que podemos fazer? Considere a importância de discutir a questão dos discursos ideológicos, aqueles que acabam por ajudar a manter tais condições perversas de vida. Muitos desses discursos estão presentes na lei, na religião e na moral. Em seguida, encaminhe a discussão para os possíveis argumentos:

Argumentos da lei – As pessoas têm o direito à propriedade e o direito de consegui-la como resultado de seu esforço. A lei garante a defesa da propriedade e não permite que ninguém a tome. Dessa forma, o sistema legal defende a existência de propriedade por parte de alguns, e não de todos. O rigor e o cumprimento da lei podem sugerir que não se deva questionar ou criticar o fato de alguns serem proprietários e outros não.
           
           

Argumentos religiosos - Para algumas religiões, o importante é o espírito, e pouco se dá valor ao corpo. Para outras, o corpo é sagrado por ser a morada do espírito. Independentemente da exaltação do corpo assumida por uma ou outra religião, aqui interessa a reflexão sobre alguns argumentos religiosos que justificam a pobreza. Quando se valoriza a fé como a única ferramenta para conseguir melhores condições de vida, temos uma compreensão de natureza religiosa que precisa ser analisada com cuidado, para não se correr o risco de anular a importância da organização e da participação de movimentos de luta por direitos como moradia, saúde, alimentação, educação.

A pobreza pode ser vista, religiosamente, até como virtude, ou o seu contrário, como castigo. Virtude, porque é bom ser pobre, desapegado dos bens terrenos, porque o mais importante é a oportunidade de crescimento e construção de riqueza espiritual. Castigo, sob outros aspectos, também religiosos, porque a grandes fortunas são vistas como uma dádiva divina, sem o questionamento de que resultam, na maioria das vezes, da exploração de trabalhadores e geram desigualdade social.

Argumentos morais - A resposta moral diz que as pessoas são pobres por causa da maldade dos ricos e pelo fato de elas não lutarem para conseguir melhores condições de vida, ou seja, ganância de uns, e indolência de outros. Por outro lado, afirma-se, os pobres não trabalham o suficiente para enriquecer. Afinal, se trabalhassem e estudassem, para além do que muitos já fazem, seriam bem-sucedidos. Em relação ao pobre, a moral ainda ensina que é melhor ser pobre do que ganancioso: “Sou pobre, mas sou honesto". Aqui, além de confundir pobreza com honestidade, o sofrimento de pobreza acaba compensado por uma autoimagem positiva, mas que não garante qualquer acesso aos bens sociais.

Em síntese, o discurso ideológico justifica a preservação de uma sociedade de pobres e ricos, ainda que atualmente possamos identificar muitas camadas ou muitos matizes no interior da classe dos trabalhadores e no interior da classe daqueles que são donos dos meios de produção e vivem do trabalho alheio. Afirmações como estas - "o trabalho torna-se a saída para a pobreza"; "a lei tem de defender o que as pessoas conseguiram com muito esforço"; "precisamos fazer doações" - não são falsas, mas não dizem tudo sobre as desigualdades, sobre o que as provoca, sobre quais seriam as possíveis soluções. São meias verdades que constituem a ideologia. Se as elites falassem apenas absurdos, seria fácil perceber suas estratégias. No entanto, a justaposição de meias verdades cria uma possibilidade de crença, de confiança, de justificativa. Por exemplo, quando se afirma que "o trabalho dignifica o homem", isso não é mentira, mas o trabalho que dignifica o homem também pode degradá-lo e fazê-lo sofrer, por alcançar pequenos resultados ao longo de sua vida e por beneficiar mais outro homem do que a si mesmo.

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Fontes: (SÃO PAULO-SEE, Caderno do professor: filosofia, EM, 1ª S., V.4, pp.12-14)

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